“Aqui entre nós, lamenta-se o canto fúnebre do prato regional, da fradesca arte da cozinha, dos sarrabulhos, das sardinhas recheadas, do assado em lenha de azinho. Come-se mal, mas, em contrapartida, sabe-se muito de dietética. Inaugura-se um grande hotel, o mestre da cozinha é formado em Matemáticas; os super-mercados são dirigidos por professores de línguas ou até graduados em Direito comparado. Doutora-se o lombo de vaca, passa-se um diploma ao chispe e ao paio industrial. Não podemos falar francamente; há sempre o risco de ofender um amigo, um bom rapaz que até faz sacrifícios pela família, tem o seu negócio, a vida custa.”
“Alegria do Mundo II”, Bessa-Luís, A., Guimarães Editores, 1998
Sem ser um “fin gourmet” ou “cordon bleu”, atributos que deixo ao meu amigo Pedro Calheiros, sou daqueles que se pela por um bom petisco, dos que, apesar de frugais nas suas costumeiras rotinas, gosta de comer e se dá, com gosto, à superior arte de bem amesandar.
E já nem falo de sobremesas: uma Barriguinha de Freira, o pudim Abade de Priscos, os ovos moles de Aveiro, os pastéis de Vouzela, o Papo de Anjo, o Toucinho do Céu, o gelado de vinho do Douro da Foz do Távora, as Cavacas da Veiga, as pêras bêbadas, o pudim de Martaínha, as Ferraduras à Prima Lena… tudas e muitas mais de se lhe tirar o chapéu.
Os nossos escritores, nos milhares de suas saborosas e fecundas páginas, têm sempre um cantinho para a petisqueira. Por exemplo Aquilino, em “Andam Faunos pelos Bosques“… a Maria Ruça para o padre Tadeu “frigia uma boa febra de porco com fígado do mesmo, o fígado do suíno beirão que é melhor que de vitela e se dissolve formando um molho sobre o grosso que é o regalo dos regalos”.
Eça de Queirós, em “A Cidade e as Serras” … “Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: — É divino! – Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde — um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo.”
Outros, a respeito da descaracterização da cozinha , insurgiam-se como Fialho de Almeida: “Isto é gravíssimo! A desnacionalização da cozinha é para mim, talvez primeiro que a dos sentimentos e ideias, revelada pela vida pública, o primeiro avanço da derrocada dos povos”, e mais acrescentava “Um povo que defende os seus pratos nacionais defende o território. A invasão armada começa pela cozinha”.
E para acabar pois alongou-se a parlenda, parafraseio meu avô Hilário, que fazia vinho tinto de 17º, de cêpa velha, na quinta do Ladário e era um dilecto apreciador de almôndegas de lebre “À mesa não se envelhece!”. E está quase tudo dito, não fora ainda esta frase da sábia Agustina: “… um homem que fuma durante as refeições comeu muito mal na infância.”
(Fotos Rua Direita)