A cega sanha, que em tais feitos nenhuma coisa esguarda, começou tanto de arder nos entendimentos do povo que à porta principal da igreja estava, que começaram a bradar em altas vozes aos de cima que estavam fazendo, que não deitavam o Bispo afundo, dizendo, Guardai-vos, não vamos nós lá, que se nós lá imos todos vós haveis de vir afundo com ele.
Aos de cima, que vontade não tinham de lhe fazer mal nem nojo, era-lhes muito grave de o fazer, à uma por ser bispo, ademais seu prelado, depois pela segurança que lhe haviam feita, e não sabiam o que fizessem.
(Fernão Lopes)
Não, não é sobre Fernão Lopes, mor cronista do Reino que adregaremos aqui hoje a falar, mas sim do arauto viseense, porta voz das Terras do Demo, a quem José Eduardo Ferreira, Carlos Silva e José Morgado, muita gratidão deverão e muita homenagem não negarão prestar, António Almeida Henriques, o homem que chegou hoje à 200ª conjectânea no Correio da Manhã, jornal que muito o acoita e à pena lhe dá asa e aso para tanto verbo.
Na tribuna onde segundo ele, toma “de empréstimo o cunho de Aquilino Ribeiro” e sabendo nós que cunho é um substantivo masculino que significa marca, selo ou carácter, aquilinianos que somos, muito nos honra o conhecimento sobre a fonte onde o autarca bebe sua linfa inspiratória e seu carácter granítico.
Será alongado o abuso e insensata a desfaçatez, ambas adrede perdoadas, por sapiente ignorância, que o mesmo é dizer, asneira da grossa, mas isso só da boca do Compadre Zacarias, um céptico consumado, sairia.
Mas nem sempre nos colhe o discordar, e tomados também de exemplar abuso, ousamos parafrasear o cronista do Rossio, nesta sentença: “serve-me para junto dos leitores sinalizar inquietações, suscitar perguntas e apontar sem medo o que me parecem erros graves, desvios encapotados, simulações de fachada ou simples paradoxos entre o discurso e a prática da nossa vida pública.”
Assim nos revemos nas suas palavras e nos seus actos, caro edil, esperando que compreenda, na profunda coerência de sua fala, quantos lhe seguirão o exemplo sinalizador de inquietações, que são tantas, face ao exercício de sucessivos mandatos e despautérios.
“Mas nas Terras do Demo há também lugar para a esperança” (…) “temos hoje no presente histórias do futuro.”
Rematamo-nos humílimos a recordá-lo que as Terras do Demo são e por ordem alfabética, Moimenta da Beira, Sernancelhe e Vila Nova de Paiva e que a obra que lhe deu título, escrita em Lisboa pelo revolucionário ano de 1917, assim lavra no seu prefácio:
”Uma vez, um homem traçou do bordão e partiu a correr as sete partidas do mundo; andou, andou até que foi dar a uma comarca cujos naturais comiam calhaus e ladravam como cães. Circunscrito, é intuitivo, a indivíduos rudes, teve em mira este trabalho pintar dessas aldeias montesinhas que moram nos picotos da Beira, olham a Estrela, o Caramulo, a cernelha do Douro e, a norte, lhes parece gamela emborcada o Monte-Marão. O vale, que as explora, trata-as despicientemente por Terras do Demo. Sem dúvida, nunca Cristo ali rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar ou os apóstolos da Igualdade em propaganda. Bárbaros e agrestes, mercê apenas do seu individualismo se têm mantido, sem perdas nem lucros, à margem da civilização.” (…) “As Terras do Demo são isso, o estudo do mundo pitoresco e primário da pedra da lameira.”
E Aquilino, de quem o nosso colega cronista tirou a marca, o selo e o carácter, abençoado ele seja paredes adentro da Igreja de Santa Engrácia, divertindo-se com os dribles do Eusébio e ouvindo o trautear de Amália, Aquilino que nunca deixou alguém sem resposta, aqui lhe lavraria este singelo afago:
“Talvez tenha cometido o pecado de esquecer que a ilusão que bem ilude não engana como a verdade que mal se veste.”
Quanto às suas “histórias do futuro” – tempo onde o sabemos anacronicamente situado – esperamos ter vida e saúde para as ler, com o mesmo encanto com que líamos há meio século, Emílio Salgari e “O Tigre da Malásia”, “A Queda de um Império”, “Os últimos filibusteiros” e “O Rei da Montanha”.
Receba a nossa cordial estima…