VISEU . RURALIDADES 4 – “O PÃO NOSSO DE CADA DIA”
E o futuro daquela criança. E outros filhos para nascer. E um sonho que ela não sabia se iria acontecer. Talvez que o seu menino não precisasse da enxada como o pai, não precisasse de lavrar. Talvez pudesse ter outro destino. Quisesse Deus fosse melhor.
(Textos ilustrativos de um antigo viver rural nas margens de Viseu ilustrados com imagens de Arquivo de Foto Germano)
4 – “O PÃO NOSSO DE CADA DIA”
Existe no Museu de Grão Vasco uma pintura a óleo de título “Regresso da Horta” que José de Almeida e Silva (1864-1945), seu autor, assina, sem a datar, atribuída no entanto, em inventário, aos anos de 1940-1941.
Almeida e Silva surpreendeu os dois camponeses que regressavam das suas belgas, nas margens da aldeia, devia ser pelos meados de Setembro e ao fim da tarde, vê-se pelas récegas de sol que ilumina o quadro, pelo agasalho de que se vestem, o homem e a mulher, pelo braçado das canas de milho que o homem suspende do braço direito, sinal de que não vem de muito longe, pelos frutos que enchem a cesta de vime que a mulher ampara antes de pousá-la. O pintor suspendeu-lhes a marcha para colher o esboço no caderno que trazia e assim permanecem, aguardando o gesto que os liberte e retornem a casa que parece estar perto.
Sente-se que já lhes pesa a idade, vê-se no rosto de ambos, mais no da mulher onde as rugas se descortinam marcando-lhe as faces.
O casal que posa na fotografia é ainda jovem e a criança que a mulher segura ao colo deve ser o primeiro filho.
Aqui é o fotógrafo quem os surpreende, mas não fica seguro, do retrato, se partiam ou vinham de regresso de uma horta vizinha nessa hora que parece ser a da meia manhã de um verão entrado, a avaliar pelas hastes maduras das ervagens. Talvez que o fotógrafo, ao passar por acaso no caminho junto à casa onde moravam, a deslado da aldeia, apenas quisesse obter esse idílico registo de um clássico grupo familiar de camponeses e vá de pedir ao rapaz que pusesse a enxada ao ombro e à jovem mulher que se postasse ao lado com o filho. Mas nem um nem outro ficaram à vontade na fotografia. O rapaz cobriu displicentemente os ombros com o casaco mas não sabe o que fazer da mão liberta e abandona-a, inexpressiva, ao longo do corpo. Também não sabe para onde olhar. A mulher, apesar da sua elegante postura, espera que o acto termine para que a viveza do olhar lhe regresse e o leve rubor das faces e distraia com risos os olhos da criança que teima em seguir ao longe o estranho que se afasta.
Não sabemos o que terão feito no resto desse dia os dois membros do casal.
Talvez ele tenha ido dar uma volta pelo campo onde o milho crescia ao sol e onde as uvas começavam a pintar. A mulher apanhou a cesta que colocara no chão. Em casa havia roupa para lavar e talvez uma teia urdida no tear. E o futuro daquela criança. E outros filhos para nascer. E um sonho que ela não sabia se iria acontecer. Talvez que o seu menino não precisasse da enxada como o pai, não precisasse de lavrar. Talvez pudesse ter outro destino. Quisesse Deus fosse melhor.