Uma nau chamada Sara
Despediu-se de mim com um aperto de mão e um até sempre comovido. Obrigado pela companhia, querida amiga, e por ter lido o meu diário...
Era dia do Santíssimo Nome de Jesus, 15 de Janeiro de 1736. João Baptista de Castro, absolutamente exausto da correria dos últimos dias, partiu de Roma pelas dez horas. Não o acompanhei como tinha sido minha intenção. Fiquei na cidade mais um mês e, quando regressei ao reino, fiz o percurso por terra. Acabou por ser uma ideia infeliz mas na altura pareceu-me um desafio à minha medida. Depois conto.
João Baptista partiu bem agoniado para Civitavecchia, não só pela saudade da terra que deixava mas também porque levava pouco dinheiro consigo e não tinha a certeza de em Génova achar letra que o socorresse. Não pude ajudá-lo… também eu gastara tudo. Mas percebia bem as saudades do meu amigo, que em poucos meses se tornara mais romano que alguns meus conhecidos e falava perfeitamente o italiano. Gostava muito de o ouvir falar, acompanhado do gesto preciso e entusiasmado, mas eu gostava ainda mais de responder num português rápido e doce quando alguém me interpelava. João Baptista olhava-me de lado e depois comentava: a menina não teve tempo de aprender a língua todos estes meses? Não me ralhe, reverendo, aprendi a dizer coisas interessantes em várias línguas, coisas que não me atrevo a repetir-lhe. Fingia-se zangado comigo e depois falava-me em latim, meia hora seguida, sobre a necessidade de amar a Deus sobre todas as coisas, do arrependimento e da penitência. Retorqui-lhe: et diliges proximum tuum sicut teipsum? Sim, quoque, respondeu já risonho como sempre costumava estar.
Despediu-se de mim com um aperto de mão e um até sempre comovido. Obrigado pela companhia, querida amiga, e por ter lido o meu diário… às escondidas. Onde tem as folhas que faltam na relação de Roma? Devolvi-lhe as partes do manuscrito e vi-o atravessar a ponte dos Anjos, pela última vez. Tinha uma surpresa para ele. Mais tarde.
No dia seguinte chegou a Civitavecchia e correu a ver as galeras de Sua Santidade e os grossos muros da fortificação da autoria de Miguel Ângelo. Debruçou-se numa das ameias, admirando-se que a delicada mão que esculpira a Pietà tivesse pensado tão grossos muros sobre o Mediterrâneo. Teve tempo de voltar ali muitas vezes, pois esperou seis dias por embarcação para Génova. Entretanto conseguiu lugar na Ostiaria della Fortuna por um preço razoável, que incluía comida e bebida, e todos os dias dizia a sua missa, recebendo esmola que não recusava por lhe ser tão necessária. A cidade era pequena… caminhou, sentou-se, conversou, confessou, pensou, escreveu. A 21 de janeiro conseguiu lugar numa embarcação francesa, que em dois dias o pôs em Génova.
E aqui esperou um mês. Só conseguiu acertar a partida para 23 de fevereiro. Mas Génova era um porto rico e a cidade tinha muito que ver. Teve crédito com um conhecido banqueiro e hospedou-se numa ostiaria onde o trataram muito bem. Depois de caminhar o dia inteiro, de visitar igrejas, mosteiros, bibliotecas e palácios, sentia-se um pequeno rei quando lhe serviam cinco pratos ao jantar e três à ceia, sempre com muito asseio. No início ficou incomodado, mas depois pensou no tempo que passaria embarcado e achou que era melhor comer tudo o que lhe davam. E enfim partiu, embarcado numa nau inglesa. Quem é o capitão? Perguntou ao marinheiro que desembarcava grossos volumes. Chama-se Richard Baker. Na vinda para Roma viajei na Grislel, disse João Baptista. Sim, conheço a nau, comentou o marinheiro, mas está parada por causa de um naufrágio que sofreu, quase afundada. João Baptista olhou a nau que se erguia à sua frente, com as velas baixas, mas galharda nas fitas que atravessavam o convés, com a proa desenhada numa figura de sereia dourada. Como se chama a nau? O marinheiro colocou-se ao seu lado, semicerrando os olhos à luz do sol branco de fevereiro. Chama-se Sara.
Creio que João Baptista estremeceu ao ouvir o nome. Sorrindo, tirou da bolsa as seis moedas de ouro e, também sorrindo, colocou-as na mão do capitão protestante que o levaria de volta ao reino. E embarcou, confiante, como se entrasse em casa. Perdera o ar de menino, mas continuava curioso e travesso, sempre pronto para tudo. Passeava pelo convés e metia conversa com os marinheiros, ajudando aqui e ali a puxar as velas quando no golfo de Leão sofreram larga tempestade. Mas eu via como de súbito se afastava, se encostava à amurada, e punha os olhos no poente, saudando as águas do Atlântico. Chegada a nau à ribeira do cais, desembarcou devagar e olhou para trás.
Tive vontade de naufragar.