Um caudal de emoções: uma revisitação

A publicação da obra poética de António Vera no Brasil: um sonho do autor tornado realidade.

  • 21:27 | Domingo, 23 de Fevereiro de 2020
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A publicação da obra de António Vera, meu pai, no Brasil, surge como o cumprimento de um desejo seu expresso em vida. Perseguiu durante a viagem da existência um amor incondicional à língua mãe, aquela à qual outorgou o estatuto de sua pátria imaterial, cultural e linguística. António Vera amava não só a poesia brasileira, da qual era um apaixonado leitor, como o próprio português do Brasil. Referia-me, quer as suas sonoridade e musicalidade quer a autenticidade e a vernaculidade da oralidade brasileira. Das leituras dos poetas que comigo e com a minha mãe partilhava, recordo, de entre alguns dos poetas brasileiros por si mais amados, Cecília Meireles, Clarisse Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e também prosadores como João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado ou Graciliano Ramos.

Também a música brasileira o sensibilizava e, frequentemente, trazia um disco em vinil quando regressava daquela terra longínqua. As obras de Tom Jobim e João Gilberto e a sua Bossa Nova, Dorival Caymmi, Elis Regina, Chico Buarque, Maria Bethania, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros, entraram na nossa casa, anunciando as paragens e as gentes que ele nos descrevia.

O seu amor à musicalidade da língua levou-o, desde sempre, a consagrar uma dupla atenção ao sentido e à sonoridade da sua poesia. Dizia-me que esta deveria ser declamada. Ele tinha, por desejo mais profundo, que a sua própria poesia pudesse, um dia, vir a ser vertida para música. E é este o outro sonho, o não revelado mas implícito na publicação da sua obra no Brasil, que algum compositor brasileiro o descubra e lhe dê a voz e a música que o possam transportar mais além.


O contributo de Maria Lúcia Lepecki para a publicação da obra de António Vera

Uma palavra ainda sobre Maria Lúcia Lepecki, a brasileira de Minas Gerais, professora de Literatura da Faculdade de Letras de Lisboa, crítica literária e comendadora, que conheci no XI Colóquio de Psicanálise da Sociedade Portuguesa de Psicanálise subordinado ao tema «Sonho, literatura e arte», em abril de mil novecentos e noventa oito. O seu poder de oração e a sua eloquência cativaram-me, bem como a toda a audiência. Passadas umas semanas pensei que seria a pessoa ideal para conhecer a poesia do meu pai e dar a sua opinião crítica. Recebeu-me de imediato, num dia chuvoso da primavera daquele ano, na Faculdade de Letras. Confessou ter-me recebido pelo contacto recentemente tido com o universo dos psicanalistas portugueses e pela curiosidade de tratar-se de uma filha a interceder pelo seu pai. No final daquela semana o meu pai e eu coligimos de imediato o conteúdo da mala preta que albergava desordenadamente poemas que ele ia fazendo e passando à máquina. Maria Lúcia gostou e, como professora que era, anotou à margem alguns poemas, tendo aconselhado a trabalhá-los mais. O meu pai, que era sempre aquele que tinha entre os amigos poetas o reconhecimento do poder crítico, estranhou, mas seguiu o seu conselho e esmerou-se ainda mais.

Só depois de estarem todas as poesias no mesmo nível subjetivo de valor, Maria Lúcia e ele travaram conhecimento pessoal numa relação que se veio a estreitar e a desenvolver, uma amizade que haveria de acompanhá-los até ao final das suas vidas. Ela haveria de partir uns meses antes dele. Recordo a sua gargalhada, a voz e o calor do seu genuíno afeto e o interesse pela obra de António Vera. Foi ela quem lhe possibilitou o contacto com a editora, a Colibri, através do seu editor, Fernando Mão de Ferro.

Reconhecido pelo meu esforço de divulgação da sua obra, foi esta a dedicatória com a qual o meu pai autografou este seu livro:

À querida, muito minha querida filha, que me guiou a mão que havia de compilar estas poesias; que me guiou os passos até quem as soube decifrar e editar; que tudo fez para tornar pública esta obra… O pai, que melhor não soube agradecer.

E infelizmente, não sabe mesmo!

17 de dezembro de 1998
António Vera

A preleção que Maria Lúcia Lepecki proferiu no lançamento de cursivo menor constituiu uma oração de sapiência que cativou a sala da livraria do editor, na Universidade Nova de Lisboa, a qual se encontrava repleta de familiares e de amigos de António Vera, partilhando com ele aquele que veio a representar um momento de mudança e de renascimento. A publicação da obra haveria de entusiasmá-lo e a dar um novo sentido à sua vida. O lançamento deste livro foi noticiado no Jornal de Letras, Artes & Ideias, publicado em Lisboa, no dia 16 de dezembro de 1997 (pág. 27).

Descobre o poeta um novo sentido para a vida

António Vera só viveu mais quatorze anos após o lançamento do cursivo menor. De modo progressivo, a dor e os seus sofrimentos intersubjetivos foram cedendo lugar a um humor mais esperançado e a uma compreensão e a uma elaboração profunda do passado infantil e juvenil, os quais lhe haviam sido dolorosamente difíceis. A felicidade que experimentou durante os últimos anos da sua existência, foi bastante mais intensa do que aquela que havia vivido anteriormente. Tal circunstância deveu-se, quase inteiramente, ao sentido da partilha da palavra escrita veiculado através da obra poética.

Naquela época atrevi-me a escrever um curto e incipiente texto sobre este seu primeiro livro, o qual entendi dever partilhar nesta edição, com substanciais alterações, mantendo embora o seu título original.

António Vera parece escrever como quem liberta um fluxo de emoções. Elas partem na busca das palavras que dão forma ao seu sentir. A celeridade do processo criativo traduz a premência dessa busca. Sem a poesia os pensamentos e os afetos, provavelmente, perder-se-iam no efémero do momento que passa. Nesta breve reflexão iremos debruçar-nos sobre o lugar que esta poesia ocupa no encontro entre o passado e o presente e na sua transmutação em beleza.

Da transmutação do sofrimento pela palavra

António Vera, à semelhança de François Cheng, o poeta da beleza e da musicalidade da criação poética enquanto orientação e sentido da vida, identifica-se com a função poética da transformação da maldade absoluta e do sofrimento na luz e no belo na linguagem. Tal como François Cheng renasceu aos cinquenta anos, descobrindo a alegria de viver através da poesia, também António Vera ressuscitou aos setenta e cinco anos, inaugurando um sentido filosófico para a viagem, o qual se irá desenvolver nos catorze anos finais da sua existência.

Talvez tenha procurado inicialmente na poesia um diálogo encetado na infância, o qual terá ficado pendente do encontro do parceiro ideal com quem dialogar. De entre as pessoas marcantes desse passado, saliento a mãe do poeta, a qual era uma mulher incompreendida no seu tempo. Revelava uma sensibilidade peculiar: amante de cinema e da leitura, encontrara no filho uma companhia entusiasmada e cúmplice. Embora tivesse apenas a 4ª classe do século dezanove, esta mulher, oriunda de Castro Marim, com genealogia espanhola, a qual lhe valera o apelido de «Vera», era leitora de autores de língua francesa, como Voltaire e Balzac. Estes autores, entre muitos outros, eram vedados às mulheres do seu tempo. Não obstante, ela absorvia-os avidamente. Lia-os na sua língua original. Teria sido na companhia da sua mãe que o poeta descobriu a paixão pela literatura, pela cultura e pela beleza que lhes era subjacente, bem como o amor ao conhecimento de outras línguas, cujo acesso era quase inacessível aos portugueses da sua condição, ou seja, àqueles que não pertenciam à burguesia instituída. Foi através da mãe que inscreveu a sua sensibilidade noutras línguas, primeiro o francês e o espanhol com a progenitora partilhados e, mais tarde, o inglês e o italiano, num período mais desenvolvido da sua formação. Neste livro dedica dois poemas redigidos em castelhano, os números 77 e 78, respetivamente intitulados «dos cuerdas sonaron digitadas despacio» e «tu cumpleaños está» à mulher amada.

O amor à(s) língua(s) enquanto ponte para o futuro

No que respeita à influência exercida pela mãe, esta teria procurado, através da leitura ansiosa de obras noutras línguas, as palavras que lhe permitissem tecer um sentido para a sua própria linguagem: aquela que o seu contexto familiar, social e político não permitia. Talvez ela buscasse numa outra língua algo que a transcendesse, procurava traduzir e compreender a sua solidão, a sua ânsia de liberdade, bem como a sua realização numa «vida paralela». O ambiente beatífico da época conduzia ao ostracismo aqueles que rejeitavam a sua observância, circunstância que levou à sua «perseguição» social e, consequentemente, ao seu suicídio. A cultura, na sua expressão literária, viria a ser o refúgio quase autístico da sua vida, refúgio no qual o filho seria o único habitante.

À semelhança do jovem Daniel Tammet – sábio poeta inglês da atualidade que sofreu de um síndroma do espectro autista na sua infância numa época em que esta patologia era ainda incompreendida – veio a encontrar na criação da poesia e da novela redigida noutras línguas, entre outras expressões artísticas nas quais se inscreveu, a ponte para transpor o caminho para a sanidade e escapar à força centrípeta e enclausurante do autismo, também o par mãe-filho Albina-António Vera se ensaiou desde cedo neste caminho de contacto com a beleza da criação.

O poeta, menino, cresceu com essa solidão, tristeza, inquietação e clausura, sentimentos que ele fez seus por serem uma pertença original materna daquele seu primevo amor. A premência pela aprendizagem, pelo contacto com outras culturas e pela expressão literária, nomeadamente pela poesia, nasceram nele sem que disso se desse conta, com a urgência de uma companhia e de uma ponte salvífica – à qual só dá verdadeiro valor quem, verdadeiramente, já se sentiu tão absolutamente só e aprisionado. O poema número 68, «a solidão alonga pelo rio» é um dos mais representativos desse estado de espírito.

A presença implícita da mãe e a dor da sua perda precoce, projetadas sobre o presente e sobre o futuro, perpassam neste seu livro. São desta agonia exemplos os poemas: número 4, «da talha benta da senhorinha morta»; o número 8, «na tela de seda da minha memória»; o poema número 18, «a tarde fez-se verde»; o número 25, «o pranto dos outros é chuva em campo alheio»; o poema número 27, «um tiro no ouvido» e, ainda o 29, «encheram-lhe a boca de areia queimada».
Esta melancolia conduz o poeta a um estatuto identitário aéreo, volátil e cinzento de sombra, estatuto este expressivo da agonia de um luto infindável. Deste estado de espírito pungente são exemplificativos os poemas: número 15, «o luar segue de branco» e o número 17, «crepita um vento fraco», que transcrevemos na íntegra: «crepita um vento fraco / na crista lúcida da onda. / colada à sombra do barco / desliza na água minha sombra. // Planície, verde várzea, / móvel e falso espelho de deus, / retém a quilha, gela a água! / que vento, quilha, mar e sombra / sou eu». E ainda o poema número 33, «neste grumo de terra a que me prendo», bem como o poema número 38, «verde o reflexo na folha iluminada».

A universalidade das suas preocupações e seu uso peculiar da função poética transmutativa: do sofrimento humano à beleza do mundo através da palavra

António Vera também se expressou na prosa poética, nomeadamente no conto. Alguns desses contos foram publicados em certas revistas nas quais colaborou na sua juventude, nomeadamente na Seara Nova e na revista literária Atlântico. Embora tivesse retomado a publicação deste género depois do lançamento do cursivo menor em revistas literárias tais como o suplemento de O Primeiro de Janeiro intitulado Das Artes das Letras, foi na poesia que encontrou a sua natural e privilegiada expressão. Foi na poesia que ele encontrou a fluência comunicativa e significativa que lhe permitiu chegar ao âmago de si próprio, ao seu lugar mais recôndito, obscuro e emotivo, ao contrário do que sucede na ficção narrativa, apenas por si reservada para guardar na memória os cenários pertencentes a um determinado horizonte temporal e mais consciente.

Sensível à natureza, à beleza da expressão da vida, às suas cores e vibrações, foi sempre movido pela inquietação curiosa, pelo espírito de busca do conhecimento e pelo altruísmo que o caracterizaram na sua atitude humanista e solidária para com o outro. Desta atitude empática para com o sofrimento e para com a condição humana são representativos os seguintes poemas: o número 44, «beltranejas, rostowes, miriápodes»; o número 48, «dou-te palavras, povo»; o número 53, «a sopa de cogumelos»; o poema número 96, «a pele que se desfralda em vis bandeiras»; o poema número 100, «cidadela desgarrada». De entre os poemas mais vibrantes deste temática, destaco o número 56, para mim, de todos o mais comovente: «o pé inchado da criança descalça / envelhece a terra ao passar. / vê-se a própria relva, / ao pisar do pé, / ficar grisalha. / e, / de repente, / a luz do dia soçobrar».

Este livro releva ainda, quer da experiência das muitas viagens inolvidáveis que efetuou por vários continentes quer do encontro com o amor e com o feminino amado. Tais viagens não foram fruto de uma circunstância fortuita, para seu deleite pessoal, como agora se usa fazer, mas sim em trabalho, ao serviço da proteção e do acompanhamento dos emigrantes aos seus países de destino e do resgate de outros por doença, incapacidade, perdas e morte daqueles que regressavam.

A nova identidade subjetiva poética: o princípio do perdão e a união inconsciente dos aspetos causadores do sofrimento inicial

António Vera, nome literário sugerido, muitos anos atrás, por José Osório de Oliveira, é o núcleo, o coração, do seu nome José António Vera de Azevedo. Intuiu, concordando com esse nome despido do seu princípio e do seu fim, encontrar aí um sentido: o da união da sua identidade poética com a presença inconsciente das qualidades representativas dos seus pais. António, nome do pai; Vera, apelido da mãe. É no seio do nome que ocorre a mais profunda e involuntária união entre o pai e a mãe, de modo a tecer, através da sua poesia, a harmonia e o equilíbrio que não existiram na realidade, assumindo na nova identidade o desiderato da transmutação da agonia no belo.

É desta beleza que a verdadeira alegria de viver, la joi de vivre, aquela que é fruto de um passado de sofrimento (como nos revela François Cheng na sua distinção entre a verdadeira e a falsa alegria), começa a despontar no cursivo menor, a primeira obra de António Vera. Trata-se de um novo estado espiritual que irá instalar-se na sua vida, resultante da viagem orientada pela nova cartografia poética.

Encerramos, evocando um dos principais poemas ilustrativos do dealbar desta jornada iniciática: o poema número 3, «enquanto maio dura»: «enquanto maio dura / é que é de andar pelos campos molhados, desmanchar os cabelos dela, cantar o verde e o encarnado. // nossa senhora abençoou os burros, / abençoemos o nosso pecado, / que, enquanto maio dura, / nada é pecado!».

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