SOUTOSA V – A VENDA DO CLÁUDIO
À bica do século XX, Aquilino tinha iniciado já o seu longo peregrinar pela terra dos homens, a Soutosa pouco mais devia ter que um cento de famílias, lavradores remediados, alguns, dois ou três de maiores posses, os Rolas e os Gaudêncios, havia o Padre Francisco com casa de mediano conforto e o senhor […]
À bica do século XX, Aquilino tinha iniciado já o seu longo peregrinar pela terra dos homens, a Soutosa pouco mais devia ter que um cento de famílias, lavradores remediados, alguns, dois ou três de maiores posses, os Rolas e os Gaudêncios, havia o Padre Francisco com casa de mediano conforto e o senhor Inácio Mioma que morava com a mãe na isolada mansão que aparentava fidalguia. No mais era casario pobre, algum de loja e sobrado, outro de porta rasgada par a rua, estreitos janelos iluminando a cozinha ou as alcovas. Os filhos nasciam, multiplicados, como os cordeiros, morriam muitos na idade de “anjinhos”, como lá se dizia e dos que arribavam muitos partiam, ao dobrar das sortes, para o Brasil. Um ou outro tornava da viagem, quase sempre para de novo partir.
O sol e a lua governavam a vida da gente, invernos mortiços, primaveras e verões de labuta e outonos em que a terra nem sempre era pródiga. Valia a Senhora da Lapa, a Senhora Mãe de Deus e dos Homens, com seus milagres, valia o Santo Antão, generoso cuidador dos gados em troca de côngrua tão pobre. E o barbeiro de Lamosa, e o corpo-aberto de Quintela e as rezas ao quebranto e o talhar do ar, da erisipela e da peçonha que as benzedeiras da terra encarreiravam sem errar.
Na quadra vinham as doceiras do Távora, chegavam com laranjas em Abril e por lá andavam pelo verão fora aforando ovos, raras moedas, castanhas piladas, feijão.
Os homens gastavam as horas pelos agros, lavras, mondas, regas, ceifas e malhas, estrumes e lenhas, reparo de currais e de caminhos. Véstias lavadas ao domingo, tamancos quase sempre tropeando entre a casa e a capela. E as feiras de Barrelas onde levavam as vacas para vender.
À noite, se era inverno, com as mulheres no serão, ou no estio, quando elas se demoravam pela fonte, os homens marcavam seu ponto nas tabernas do lugar, na do Cláudio, aberta para a Praça, na do Guilhermino ou na dos Gaudêncios que abria para a corredoura que atravessava a freguesia. Foi na venda dos Gaudêncios que alguém moinou da bolsa de um almocreve ali aposentado as trinta peças cujo rasto se persegue em traços de romance. O Guilhermino fechava cedo, mal despediam os homens que vinham de talhar as águas ou de espreitar o meloal. Ficava aberta a venda do Cláudio, loureiro à porta como as outras. Bem apessoado, correntão, de fácil relação com os figuros da vila, fora e viera duas vezes ao Brasil, deixava vasta descendência num caminho de muitos amores vadios e, apesar dos setenta anos feitos ainda era possível vê-lo, num tempo morto do negócio, jungir as vacas para uma carga de painço ou a plantar castanheiros numa courela que vagara do centeio. Fora isso mantinha-se adentro do balcão da sua venda, a pipa cheia com o vinho trazido em ancoretas das faldas do Douro e os arcazes de madeira no compartimento vizinho onde guardava os artigos de mercearia que trazia da vila ou ali, por almocreves, lhe chegavam. Um banco corrido e duas mesas sebentas do uso onde abancava, noite sobre noite, a rapaziada que não dispensava a jogatina. Pedia-se o baralho. E era o chincalhão, a bisca samarreira ou a bisca de quatro, as cartas dobradas nas mãos tentes do Zé Narciso que emparceirava, na ronha, com o João Lájeas ou o Zé da Claudina. O vinho corria em canadas. E a noite corria também, esquecida. Até que o galo cantasse e se ouvisse na calçada o tropear descompassado dos tamancos ferrados.
Florinda comprava ali os palitos, o azeite, o sabão e outras miudezas. Mas uma vez foi o seu homem, o Luís Rola, quem veio comprar o bacalhau para o Natal. Somítego como era nem da mulher confiara a tarefa. E foi a pontos de muito marralhar com o teimoso do Cláudio que lá levou uma magra peixota que, mesquinho, fez estender para as sextas da Quaresma. Era ali também que a Zefa do Alonso se abastecia, lambisqueira sem regra, sem vergonha da dívida que ficava marcada na lousa que ao dependuro de um caibro aguardava a pobre remessa do seu homem que voltara à descarga do lixo nos largos areais da Sapucaia, nas margens do Rio, coitado.
Memórias. Memórias que eu gostava de ver, um dia, na Venda do Cláudio, reinventada numa Praça antiga da Soutosa.
(foto DR)