Sou capaz de ir aí pelo Natal

Sou capaz de ir aí pelo Natal. Espero que o banco da lareira esteja vazio. E que haja ainda um tempo vazio para enchermos. Junto às chamas.

  • 16:02 | Segunda-feira, 21 de Dezembro de 2020
  • Ler em 3 minutos

Light seeking light doth light of light beguile

W. Shakespeare, Love’s Labour’s Lost (l 77)

 


Sou capaz de ir aí pelo Natal. Talvez seja a quadra que me leve aí. Talvez seja o pretexto que a quadra dá. Talvez seja a saudade de aí. O Natal dá muitos pretextos. Até dá tempo de paz. Sendo os outros tempos que não são Natal, tempos de guerra. E é em tempo de paz que me apetece ir aí. Porque talvez aí haja paz também. Talvez tenhamos vivido sempre em tempo de guerra. Fazendo da nossa curta vida comum uma guerra igual ao tempo em que vivíamos.

 

Sou capaz de ir aí pelo Natal. Não terei assim que explicar porque vou. Porque ir pelo Natal revela princípios salutares. E bons fundamentos cristãos. É Natal e vim. Vim porque é Natal. Comprarei uma prenda. Não será uma prenda cara. Nunca se chega ao Natal de mãos vazias. Ofertar-ta-ei com ar distraído e de circunstância. Porque é Natal. Tempo de dar prendas. E as prendas querem dizer que gosto de dar. Ou que gosto de dar-te. Ou que há muito queria dar-te. E não achei desculpa válida para o acto. Farás um ar de falsa surpresa. E com a boca emitirás um Ooohhh rolado no carmim de teus lábios. E acrescentarás com a ingenuidade das papoulas de primavera: — “Não tenho nada para te dar. Não sabia que vinhas cá passar o Natal…” E eu penso que já deste. Deste-me o rubor leve de quem mente no Natal. Enquanto abrias de distraída fingindo, o presente que te dera. E quando viste que o papel dourado cobria o passado mau que fora. O rosto ficou mais rubro. Os lábios da cor do rosto. Os olhos da cor boa do passado bom. E as palavras humedecidas. Do prazer embaciado em duas lágrimas muito gordas.

 

Sou capaz de ir aí pelo Natal. Porque as saudades guerreiam no meu espírito. Porque não acrescentei as palavras que sentia. Às muitas palavras más que proferi. Porque nunca te disse que eras graciosa. Leve. Rija. Forte. Doce. Suave. Terna. Bela. Espirituosa. Elegante. Inteligente. Tão serena nessa informalidade acolhedora. Tão sagaz no olhar que revelava. E tão sábia nas palavras que calavas. Nunca te disse como gostava de estar junto a ti. E de te tocar numa carícia continuada pela aurora. E de te ouvir respirar enquanto dormias. E de ouvir o teu suor contar as conversas do corpo, indiscreto. Nunca te disse a importância que tinhas para mim. Tão grande que nunca soube dizê-la. Nunca te disse que estavas tão próxima que nunca perdi tempo a ver-te bem. Olhar e ver. Nunca te disse tudo o que deveria ter-te dito e realmente sentira. E isso foi fatal. Porque precisavas de mo ouvir. E enchi o nosso tempo de silêncios. Quando deveria tê-lo enchido de gargalhadas alegres. Talvez nem saiba rir. Não me lembro de ter rido. Não me lembro de ter rido ao pé de ti. A tua presença distraía-me de tudo. Ou talvez não fosse simplesmente capaz. De saber apreciar-te. E dizer-te quanto eras. De sublime. Na tua ingenuidade ansiosa. Na tua verdade de aprender. A fazer bem os gestos todos. Era tão importante para ti saberes fazer bem os gestos todos. E pouco cuidei em ensinar-tos. Estava também a aprender contigo. Coisas novas que me deixavam espantado. E devia ter-te dito desse espanto. Que era o meu coração a abrir. Todas as cerradas portas férreas que eu fechara há tanto. Porque não me apercebi da falta das palavras. E de que o silêncio era o meu atónito sentir. Sozinho que devia partilhar. Partilhar. Foi a maior falta. Depois no tempo longo que sobrou desde a partida. Andei em vão meses a fio perdido no escuro áspero. E foi aí que te vi bem. Ajudado pela distância e pela ausência. E percebi o quão displicente fora. E atrevido ao desafiar tua inocência tão sábia. E não consigo recordar uma bulha sequer. Mas lembro preciso como uma mira. As coisas boas que brotavam de teus gestos. Teus afagos teus dizeres. E teu corpo. A fala do teu corpo que me falta. Silenciando tanto o meu.

 

Sou capaz de ir aí pelo Natal. Espero que o banco da lareira esteja vazio. E que haja ainda um tempo vazio para enchermos. Junto às chamas. Com uma torrente de palavras e suspiros. Sussurros e sorrisos. Gargalhadas e loas. Loas ao querer-te tanto. E tu quereres que eu te queira assim. E tu quereres-me tanto. E eu querer que tu me queiras assim.

 

Sou capaz de ir aí pelo Natal. — “Desculpa, não percebi que disseste… Não estás aí pelo Natal? Não, não estou a gritar, estou a falar normalmente. Mas está toda a gente em casa, este Natal… Ah, estás noutra casa, este Natal… desculpa, desculpa, está claro que compreendo. Eu também não tinha a certeza de querer ir aí este Natal. Tenho vários convites. Ainda não decidi. Que imbecil! Afinal porquê ir aí este Natal?”

 

 

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Cultura