O tempo e os pobres

«Aqui», escreve José Régio à mamã, «quase houve calor, depois um frio insuportável, depois neve, e agora chuva entremeada de sol e ameaças de trovoada».

  • 21:13 | Quinta-feira, 03 de Setembro de 2020
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Quando Manuel Rodrigues Lapa recebeu a carta do filho, não podia saber que José Régio escrevera à mãe em 4 de Março de 1944, mas viviam no mesmo tempo e partilhavam, por isso, a mesma realidade.

Nos anos anteriores, a mãe do José Maria mandava-lhe açúcar para Portalegre, e o poeta compensava-a com três quilos de arroz, remetidos para Vila do Conde «para a mamã não sentir muita falta de ele e não estar só a comer batatas». Os proventos literários começavam a dar-lhe o desafogo financeiro que o lugar de professor liceal só por si não concedia. Nas contas familiares lembrava-se de deixar as sobras para os pobres. A vida no Alentejo começava a apaziguá-lo. E na sua casa, repleta de antiguidades que comprava em longos e regulares passeios pelo campo, encontrava a paz que a timidez parecia vedar-lhe nos contactos públicos.


Nessa carta de 4 de Março, dava conta das emendas que fizera numa peça de teatro para a adaptar aos critérios do censor, que o recebeu em Lisboa, «amabilíssimo» e reverenciador da obra que se sentiu compelido a corrigir.

A sua saúde ia «sem novidade», como então se dizia. O sol, que Primo Levi reverenciava como à salvação da morte num campo de concentração nazi, era em Portalegre uma fartura de que se podia desdenhar. «Aqui», escreve José Régio à mamã, «quase houve calor, depois um frio insuportável, depois neve, e agora chuva entremeada de sol e ameaças de trovoada».

No dia 4 de Abril era certo que a peça já não iria à cena por constrangimentos da companhia de teatro. Pouco depois, José Régio partiu para Vila do Conde e a 21 encontrava-se outra vez em Portalegre. Em princípio de Maio, o calor «começou a apertar». O escritor dera-se a negociante informal de antiguidades e estava prestes a vender um jogo da tia Felicidade por 550 escudos, seja o jogo o que for. O censor deu-se ao trabalho de redigir uma epístola para lamentar que a peça não subisse ao palco e prever a sua representação na época seguinte. A 4 de Junho, na carta de parabéns pelo aniversário da mãe, informou-a de que o tempo corria «cheio de trovoadas e irregularidades».

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