O quadro perdido de Liotard
Só depois do Ano Novo voltei a estar com João Baptista. Tudo correra de feição e começava a preparar as coisas para o regresso.
Passados os meses de Outubro e Novembro estive um mês quase sem ver o Padre João Baptista de Castro. Choveu muito e o reverendo padre ocupava-se com os negócios de Lourenço Morganti, motivo por que viera a Roma. Soube muitas coisas deste Lourenço, natural de Lucca, bibliotecário do cardeal patriarca D. Tomás de Almeida, para além tradutor e editor. Disse João Baptista que ele também vendia livros mas que não era livreiro… e que ficara tremendamente aborrecido por Barbosa Machado o ter omitido da Biblioteca Lusitana por ser estrangeiro. Mais sorte teve o seu filho Bento Morganti, que nasceu em Roma e estudou Cânones em Coimbra. Haveria de me ser muito útil a sua descrição das exéquias de D. João V e muitos outros opúsculos igualmente úteis e curiosos.
João Baptista já escrevera a sua descrição de Roma. Consegui tirar-lhe algumas folhas e voltei a fazer grande parte das visitas que já tínhamos feito os dois quando o tempo estava mais quente. Confirmei os detalhes que a descrição do meu amigo apresentava e imaginei-o de fita métrica a medir talha e mármore. Passei muito tempo sozinha, pensei em muitas coisas. Os dias eram pequenos, as noites longas e solitárias. Bem, nem todas. Naqueles dias tinha-me mudado para um pequeno aposento numa rua estreita, entre Sant’Andrea della Valle e o Campo de’Fiori. Não me preocupava o passado nem o dia de amanhã e sabia que depressa deixaria Roma. Conheci pintores e poetas. Ah, os poetas! Conseguiam pôr em verso os meus suspiros e a forma breve do meu corpo envolto em seda. E depois conheci um estrangeiro que viera estudar pintura, Jean- Étienne… Passava muito tempo na corte do Papa, Clemente XII, e pintou-lhe o retrato. Saiu-se tão bem que vários cardeais lhe encomendaram também o trabalho. No meu quarto, com paredes pintadas a ocre, guardava pincéis e telas. E eu ficava horas sentada, com uma fiada de pérolas no colo, fazendo pose, depois de cearmos em Trastevere e de atravessarmos a Ilha Tiberina, trocando beijos na ponte Cestio e na Quattro Capi… Liotard, o meu pintor turco.
Só depois do Ano Novo voltei a estar com João Baptista. Tudo correra de feição e começava a preparar as coisas para o regresso. Se a menina tem tempo, disse-me, venha comigo ver de uns livros. Caminhámos ao longo da Via del Pellegrino e ri-me com os comentários do meu reverendo amigo sobre a vida social em Roma. Não se ria, minha amiga, que é mesmo assim! Olhe que descobri em mim artes de um verdadeiro político! Todos tratei com asseio e gravidade, sem me vergar alguma vez. Viu aquele que passou por nós agora? É português, fugido… mas aqui todos o tomam por fidalgo. Também fingi que sim, que o era, todas as vezes que tratámos de negócios. Tive o cuidado de visitar os ministros portugueses, mas sempre certo do meu valor, sem pedir favores. Lá fui espalhando moedas pelos criados… enfim, há coisas que não mudam e são universais. E intemporais, acrescentei eu. Concordo, continuou João Baptista. Mas o mais difícil são as senhoras… é de educação cortejá-las mas sempre com todo o cuidado. Elas não são formosas, como o é a minha excelente amiga… não negue! Vi o quadro de Liotard exposto na Academia e são os seus olhos que iluminam o corpo reclinado em sedas. Já vi que não cuidei da sua alma como devia… Voltemos às senhoras romanas. Elas não têm formosura mas participam de uma graça e de uma afabilidade natural que nos limpam as algibeiras no jogo, no passeio e nas óperas. Grande prudência remedeia e atalha grandes perigos!
Grande verdade, João Baptista. Quando o meu amigo partir de Roma eu também vou. Quero ver a primavera em Lisboa. Mas antes disso tenho de roubar um quadro da Academia.