“O Homem da Nave”

Editada em 1954, sob a habitual chancela da Bertrand, revela-nos uma tessitura tão prodigamente esboçada na sua geografia sentimental.

  • 9:56 | Segunda-feira, 29 de Maio de 2017
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A Bertrand sob a presença ativa do seu editor, Eduardo Boavida, encetou há largos anos um rumo editorial visando a reedição de um conjunto de obras de meu avô, que, ora esgotadas ora malogradamente esquecidas pelo passar do tempo, mereciam voltar a marcar o ritmo do encantamento nas montras livreiras. Por certo, tendia-se a abrir uma paleta que, pedindo auxílio ao escritor Mário de Carvalho, acolhe “e releva o balanceio entre a cidade e o campo, a disseminação por vários géneros, romance, novela, conto, ensaio e tradução , o assomar duma cultura densíssima e multímoda, de vasta e partilhada repercussão, desde os autores clássicos remotos e estruturantes, até aos da sua contemporaneidade”.

Tudo isto lavrado pela envolvente participação de meu pai que por força da sua erudição, do seu distinto e refinado bom gosto literário soube fazer da divulgação do legado ficcional de meu avô o mais importante e belo projeto da sua vida. E fê-lo como ninguém com uma dedicação desprendida de quaisquer interesses que não fossem o de celebrar a expressão desse território literário.

Após a morte de meu pai, coube-me acompanhar mais proficientemente o trabalho editorial da Bertrand. Ora, na matiz deste itinerário gostaria de avultar duas edições, curiosamente as últimas, porque as reputo revestidas de forte capital simbólico ao envolverem parcerias com autarquias das Terras do Demo: uma primeira, “O Cinco Réis de Gente”, que mereceu o apoio da Câmara Municipal de Sernancelhe, e que foi motivo de um lançamento no ano passado numa cerimónia de apertado registo emocional, em 17 de Setembro, no Pátio dos Sanhudos, junto à casa onde terá nascido o meu avô; e agora, uma segunda, por via deste “O Homem da Nave”, tendo como parceira a Câmara Municipal de Moimenta da Beira.


É justo que releve os nomes do Presidente da Câmara Municipal de Sernancelhe, dr. Carlos Silva, do Diretor da Revista Aquilino, dr. Paulo Neto, e do Presidente Câmara de Moimenta da Beira, José Eduardo Ferreira, porque ajudaram a levar a bom porto um projeto editorial tão afirmativo para uma estratégia integrada de desenvolvimento local.

Com estes aquilinianos de raiz, habituados a fundamentar com amadurecido e sólido conhecimento os temas que abordam, tenho mantido uma laboriosa cumplicidade na divulgação da obra de meu avô Aquilino. A vossa dedicação cala fundo no meu coração. Um bem-haja a todos por isso.

Bom, e o que dizer desta peça literária que nos trouxe a este Lugar do Senhor da Aflição?

Editada em 1954, sob a habitual chancela da Bertrand, revela-nos uma tessitura tão prodigamente esboçada na sua geografia sentimental.

Mais uma vez é o escritor que pinta o elo que une a personalidade das suas personagens e o sítio de nascença. Um quadro natural e humano em que cresceu e se fez gente, onde a Serra da Nave e todo o maciço planáltico da meseta beiroa estavam isolados do resto do país. As populações viviam da autossubsistência numa luta agreste contra a natureza madrasta. Nesta moldura o escritor despertou a sua sensibilidade para a subtil relação que se estabelece entre o homem e as coisas e a importância que estas podem ter no seu destino.

Assim, começa por nos dizer: “As serras em Portugal nem sempre conservaram o nome primitivo. Crismaram-nas os geógrafos”. Sendo eu geógrafo de formação atraí-me do princípio ao fim a descrição desta “sala de bailar dos ventos, coreto tenebroso de lobos “e de chãs surradas”. Também por esta razão sorri encantado quando conseguimos convencer um académico de que muito admiro, o Prof. Álvaro Domingues, por sinal igualmente geógrafo, a prefaciar este livro e que ditou uma nota preambular de grande rasgo para um livro que se lê de um fôlego.

Mas voltemos à lavra de Aquilino neste livro de crónicas aldeãs. Nela inscrevemos “a feira do tempo da Maria Castanha”. Ou o rasgo impiedoso do calendário anual, aquele rigoroso e invariável tique-taque das estações que levava a que a “certa altura do ano, aí por fins de Agosto, a Natureza” mostrar-se “pálida de tons, cansada exausta à força de produzir, como uma boa matrona que deu uma dúzia de filhos à pátria”. E então “tudo na terra e nos céus prenuncia o Outono”. Figuram as expedições cinegéticas na Serra da Nave, com o bom guia Gil Sapateiro, “o único competente para aquela emaranhada corda de serras”.

Mas também o seu benevolente “Parque Kruger”, naquela quinta – a que realisticamente chama de quintal grande – lugar onde se situa a atual Fundação Aquilino Ribeiro – e onde passava longos  dias de Verão. Fala-nos das suas tílias, árvores frondosas que ainda ensombram o sítio e que por ele foram plantadas. E de toda a passarada passou a fazer delas o seu santuário privilegiado. Pardais, melros, papa-figos e toda a raça miúda de bicheza alada.

Tendo ponto de honra que dentro deste espaço ninguém disparasse um tiro contra qualquer espécie de caça fosse ela qual fosse.  Sendo a paisagem o motor da intriga dos seus livros e muitas das suas ações asseguradas pelo cortejo descritivo dos passaredos, “desde os mais mesquinhos aos mais pimponaços” teria aqui a sua admirável fonte de inspiração.

A certa altura, Aquilino elucida-nos dizendo que “lê-se em Grimard, o poeta do reino vegetal, que as plantas não têm história. Têm, sim. Nós é que não sabemos contá-las”.

Mas na sua bordadura literária elas são parte de sua escrita. dessa admirável seiva que felizmente teima em perdurar para lá de todas as nossas vidas.

Neste dia 27 de Maio, passados 54 anos de sua morte, dizemos que o legado literário de Aquilino é indestrutível. Nasceu para nunca mais morrer.

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