O grande mosteiro e o pequeno museu
Chegados à entrada de Arouca, parámos por mor da fome e da gulodice, que não quisemos refrear. Servimo-nos de morcela doce.
Uma hora após a extinção do incêndio da Catedral de Notre-Dame, tomámos o automóvel que, por um itinerário intrincado, nos levou à fachada severa do Mosteiro de Arouca. Ainda tinha nos ouvidos as observações repetitivas e em demasia vagas que acompanharam as labaredas crudelíssimas que emergiram no telhado, o abrangeram todo e tombaram o pináculo incandescente. As televisões escolheram ouvir embaixadores e comentadores políticos, que lançaram no éter os oitocentos anos de história, os essencialismos do valor identitário, a dor da França e o significado europeu do património. Também deram a palavra aos arquitectos, que elucidaram sobre as dificuldades da reconstrução.
Chegados à entrada de Arouca, parámos por mor da fome e da gulodice, que não quisemos refrear. Servimo-nos de morcela doce. Não agradou a todos por ser doce, como se isso não estivesse no nome. Eu honrei a minha parte e a que sobrou dos outros. Não julguem, porém, o meu génio pelas morcelinhas que comi, que eram só duas e diminutas. O espírito, tolhido pelo abrasamento da catedral, deixou-se sossegar pela simpatia do dono do estabelecimento, a quem aprouve indicar a localização de três restaurantes, dos quais haveríamos de eleger um. Tão boa conta deu de si nesta tarefa que, sem esforço, os encontrámos e escolhemos. Mas o festim não atingiu o nível que conjecturámos.
Em torno do mosteiro, num jardim bem cuidado, como parece ser toda a vila, que não visitava há quase trinta anos, lográmos aspirar o aroma intenso das glicínias, e fomos servidos pela fragrância das laranjeiras que ornavam uma moradia e nos fez parar de surpresa. Havia dois meninos a jogar à bola na calçada que recobre o chão da praça, em anfiteatro, e tem por cima duas tílias bem copadas. Do outro lado da estrada, está o dito mosteiro, onde haveríamos de ir com gosto e sair desgostosos com um pormenor. Depois de visitarmos a igreja e a arca de vidro, em cujo interior repousa há séculos D. Mafalda, a neta beata de D. Afonso Henriques, e sendo já duas horas da tarde, entrámos pelo terreiro poente, digno e simples, em harmonia com a terra onde estávamos e a paz que dela se desprendia. A Rita tinha acabado de perguntar se o futuro se faria sem aqueles grupos de homens, reformados das lides profissionais, a palestrar à sombra de uma das tílias. Respondi que sim, a pensar na minha infância, quando esses agregados se formavam ao domingo, depois da missa, e incluíam crianças, adolescentes e homens de muitas idades. Já não guardo a memória dos assuntos, excepto a guerra colonial, porque foi aí que aprendi os perigos da Guiné e a explicação para o suicídio de um rapaz que lhe sobreviveu.
Na porta ao fundo, disseram-nos que o mosteiro não se visitava a partir dali. Comentei logo, aproveitando o que lera na véspera, que naquele casario recuado nasceria um hotel de setenta quartos, concessionado há poucos dias. A entrada fazia-se pela porta anterior, provida de um tanque em pedra, de rebuscadas paredes curvilíneas. Se eu fosse um viajante avisado, e não este escrevinhador casual e irresponsável, tinha registado logo o soberbo diálogo travado na compra dos bilhetes. A jovem senhora que os devia mercar, não foi talhada para a tarefa, apesar de tão simples, porque perguntou coisas estranhas e fez ilações deploráveis. Não posso ser mais exacto. Sei que, olhando para mim e para a Eugénia, que vamos a meio da casa dos cinquenta anos, quis saber se tínhamos mais de sessenta e cinco. Depois, perguntou à Rita e ao Manel que estudantes eram eles, ao que eles disseram ser universitários. Atarantada, a funcionária respondeu que, nesse caso, o desconto não era possível. A Rita apontou para a placa que estabelece essa benesse para o escalão dos 14 aos 24 anos. Também não sabia se os rapazes e as raparigas pagavam o mesmo. Cuidaria ela que o acesso era para uma discoteca?
Subimos ao claustro, de onde partiria a visita guiada, a rir do pitoresco e a ler, incrédulos, a factura simplificada onde se especifica um valor de três euros para um «varão nacional», três euros para uma «senhora nacional» e mais três euros para dois «alunos do ensino secundário de Arouca». Ficámos ali uns bons quinze minutos, durante os quais trocámos impressões sobre os vários significados da palavra varão. Também apreciámos a quadra verdejante, carente de jardineiro, e olhámos as quatro bicas do tanque central, que produziam um ruído tranquilizador. Deixámo-nos tomar pelo calor, fizemos fotografias do espaço e de nós, e pensámos em quão triste seria viver em cativeiro naquele casarão imenso, tendo por único sol este em que estávamos.
Veio enfim a jovem que havia de nos explicar aquelas paredes, as mulheres que entre elas viveram, os quadros que delas pendiam, os objectos em que as senhoras poisavam o dia-a-dia. E logo pediu compreensão por ser estagiária. O seu timbre era de quem falava de cor e os seus remates de quem não queria perguntas. Manifestava a simplicidade do desinteresse, parecia falar de coisas que menosprezava. Ignorava que aquele grupo de quinze pessoas tinha o entusiasmo que lhe faltava. O que, em alguns comentadores do incêndio de Notre-Dame, era banal por excesso de afectação, era aqui banal por completa falta de espírito. Reprimi uma interjeição quando ela, numa frase que infelizmente deixei por anotar, disse de um retrato que, como a Mona Lisa, olha sempre para o espectador, qualquer que seja o lugar em que ele se encontre.
Nós os quatro, que escapámos, por misericórdia de Nosso Senhor, da mais crassa estupidez, voltámos ao terreiro aturdidos, desanimados e furiosos. Aturdidos porque não esperávamos tão paupérrima visita e até pensávamos que coisas assim já não existiam. Na verdade, quando não havia guias, era corrente encontrarmos pessoas curiosas e amantes da terra, que tudo protegiam e enalteciam por bairrismo. Lembro-me bem do admirável homem que, em Tarouca, há vinte anos, nos levou ao órgão, mostrou os óculos anacrónicos numa figura de azulejos e outros mil pormenores, apresentados com vivacidade e paixão. Desanimados porque desfazia e apoucava um património extraordinário. Furiosos porque isso não se pode tolerar neste ano da graça de dois mil e dezanove. A Eugénia e a Rita criticaram asperamente, cobertas de razão, a falta de atitude da estagiária, que não estudou o mosteiro, não aperfeiçoou o discurso, nem cuidou da postura e dos gestos. O Manel, com meridiano realismo, lembrou que o mais certo é que ela estivesse ali de graça. Eu, mais compassivo do que ingénuo, lamentei a pobre criatura que, mesmo querendo, nem em vinte anos saberia guiar, e culpei quem, acima dela, lhe franqueou a responsabilidade, exercida sem apoio.
Deste terreiro para diante, como escreveu Fernão Mendes Pinto no capítulo XCI, continuámos a nossa viagem pela serra acima, até chegar ao museu de trilobites de Canelas. Depois da afectação dos comentadores de Notre-Dame e da planura desrespeitosa da guia de Arouca, fomos recebidos por um homem que tirou da sua pedreira os mais extraordinários exemplares desses seres mesozóicos, recolheu-os amorosamente, gastou dinheiro para os preservar, construiu-lhes um museu, chamou os paleontólogos, interessou-se pela geologia e agora, falando das trilobites e não de si, explica-nos de forma simples e incisiva o valor científico dos fósseis que temos à nossa frente. Todo o seu desvelo se emprega a elucidar o valor do conhecimento contido naqueles relevos de pedra. Nem vaidade vã e palavras ocas, nem simplismos que rebaixem o visitante. Tudo certo e bem medido, compreensivo, metódico, sem invenções, mostrando o que se sabe e o que não se sabe.
Quando o património é realmente valioso, uns falam de si a pretexto dele, outros não o querem ver e alguns dão tudo de si para o oferecer a quem o queira apreciar.
(O pormenor do quadro pertence a O Nascimento da Virgem, de Bento Coelho da Silveira, de finais do século XVII.)
Abril de 2019.