Na ponte dos Anjos
Era pouco tempo... mas naqueles meses eu ficaria a conhecer Roma como a palma das minhas mãos.
Dizia Séneca que o ir pelo mundo não seria a mesma coisa para todos. Pois não, pensei para comigo enquanto levantava as pontas do vestido de seda leve ao passar pelas poças de água. Tinha caído um aguaceiro e trovejara. Passávamos pela ponte dos Anjos para irmos a S. Pedro, e João Baptista, de batina e pasta de couro atravessada a tiracolo, levantava a mão, com o indicador bem esticado, e continuava no latim que soava tão claro na sua voz: sapiens peregrinatus, stultus exulat. E explicava-me, cheio de paciência, que sendo o viajante sábio seria a jornada peregrinação, o estado perfeito, mas que sendo néscio pouco lhe aproveitaria estar fora da pátria e isso mais não seria que desterro. Parámos a olhar cada um dos anjos erguidos contra as nuvens cinzentas, agora raiadas de luz. Eram belos.
João Baptista de Castro chegara a Roma quase no fim de agosto, a pior altura do ano, quando o Tibre se evolava em vapores doentios por causa do calor e se espalhavam enfermidades e mortes. Por isso, minha excelente amiga, dizia ele, arvorando um ar sábio e doutoral, com uma pontinha de riso a despontar, não beba águas desta cidade, mude de bairro que esse em que vive é pestífero… não beba água gelada, nem coma fruta fresca, fuja do ar da noite e do sol do dia, e não faça exercício… de tipo algum. Olhei-o de lado e ele sorriu e acrescentou que não tinha nada a ver com a minha vida, mas que devia zelar pela salvação da minha alma. Pois faça isso, respondi-lhe, que da salvação do corpo cuidarei eu.
Só no fim de setembro a cidade era mais segura e ele aguardava serenamente. Não perdera tempo e começara a escrever a sua descrição da cidade, este manuscrito que agora transcrevo para o computador. Para não deambular pelas ruas com todo o calor que se fazia sentir, passava horas nas bibliotecas. Entrei muitas vezes na Biblioteca Angélica, na Praça de Santo Agostinho, e espreitei os livros que ele lia. Muitas vezes lhos deixei separados para que ele mais facilmente os encontrasse. Mas o que eu gostava mesmo era de segui-lo pelas sombras das velhas ruas. Passámos horas no Panteão, sentados os dois no chão com os olhos no alto. Sabe, João Baptista, um dia vão deitar rosas de lá de cima e eu vou estar aqui em baixo e guardar algumas pétalas no meio do diário que vou perder. Depois seguimos para Santa Maria sopra Minerva e fizemos o mesmo a ver as estrelas bordadas no fundo azul e gótico. E corremos tantas ruas, igrejas, e palácios, e ruínas, e praças, e fontes, que lhes perdi a conta.
Naquela tarde íamos a São Pedro no Vaticano. Vamos, menina, mexa-se, que eu quero subir ao globo por cima do zimbório e ver Roma e o céu ao mesmo tempo. Atravessámos a Via della Conciliazione em passo rápido. Já na praça, desta vez João Baptista não falou das fontes, nem do obelisco, nem de Bernini, e subiu as escadas a correr. Não o contrariei. Mais tarde tive tempo de ser pomba e banhar-me na água fresca das fontes. E subimos até ao zimbório, com ele aos ralhos e comigo a queixar-me. Eu sabia o que ele queria ver. Ainda hoje tenho as imagens na memória. Quantas vezes desci do autocarro mais cedo para poder ver a Praça de S. Pedro no fim da tarde? Mas só duas vezes senti a tempestade assim tão perto e aquele calor sufocante: naquela tarde do mês em que João Baptista chegou a Roma, em 1735, e na tarde em que fiquei sozinha no terraço depois de uma visita privada às stanze e à loggia de Rafael. Em janeiro o meu reverendo amigo voltaria para Lisboa. Era pouco tempo… mas naqueles meses eu ficaria a conhecer Roma como a palma das minhas mãos.