Luta selvagem para multidões cruéis
Em 1902, o sportsman Carlos Calixto leu o depoimento de um participante italiano, chamado Rodolfo Muller, na corrida dos seis das,.
Em 1902, o sportsman Carlos Calixto leu o depoimento de um participante italiano, chamado Rodolfo Muller, na corrida dos seis das, em Nova Iorque. Não diz onde obteve o depoimento, mas transcreve-o. E eu traslado a transcrição, desesperando assim o Anastácio, que me fita, especado, na estrada para a Mata. Meti-me com ele:
– Já tomaste as vistas sobre o Espinhal? Repara no que a Curia é em 1904: um chão plano, alagadiço, escalavrado, quase abandonado desde a crise filoxérica.
Virou-me as costas e caminhou ainda mais na direcção da Mata. Depois, voltou-se.
– Já percebeu porque é que só tem três leitores?
Rodolfo Muller procurou o rendimento e a glória nos velódromos e, ao abjurar deles, como é comum entre os neófitos, deu deles um quadro de horror:
«Agora que deixei a pista, que abandonei esta luta selvagem, vou escrever estas linhas longe da multidão cruel e da música estridente.
Homens de pernas nuas, em uma máquina frágil, voltejando, caminham com a fisionomia alterada, magros e abatidos pela fadiga, perante um público excitado, selvagem que solta gritos desconexos, que assobia, que canta, que excita os corredores à luta.
E sempre a música duma orquestra atroz de metais, ecoando por todos os ângulos, espalhando-se por todos os recantos, despertando os corredores que descansam ou que dormem momentaneamente. Esses corredores estão em pequenos gabinetes, agrupados, estendidos em tarimbas. Cheira a hospital.
Uns comem e outros dormem um sono profundo e agitado. Os que dormem sofrem as massagens sem acordar.
Antes dos gabinetes há a cozinha onde uns pretos grelham constantemente costeletas e bifes e preparam ovos e chá para os homens que chegam de vez em quando, com os olhos mortiços, escorrendo suor. O ar é irrespirável. Há um cheiro a azeite de palma que serve para as massagens.
E em redor da pista, a música que toca incessantemente, aumenta o suplício dos infelizes corredores.
Vamos, senhores, ide ver o Homem-Máquina.»
Um simples asterisco separa este texto, metido no protesto civilizador de Carlos Calixto, da nota informativa sobre as corridas que, no dia 15 de Dezembro de 1903, um domingo, decorreriam em Aveiro, com diplomas e medalhas de prata para os vencedores. A prata não perde o valor pecuniário só porque se ostenta ao peito, pois não?
Segue-se outro asterisco e mais notícias sobre os treinos para a corrida dos seis dias e as disputas de velocidade paralelas a essa famosa e, para os cavalheiros, horrível prova nova-iorquina.
Outro asterisco ainda, e seguem-se os ganhos em dinheiro de ciclistas estrangeiros em velódromos alemães. Variam entre 1047 e 10785 marcos.
E tudo isto é redigido por Carlos Calixto, presumo que muito contra a sua vontade. Trinta anos depois, o assunto continua a assombrar o ciclismo português.
Sobressaltei com a entrada do Anastácio no automóvel.
– Tenha paciência, senhor Escrivão. Vamos embora!
– Ainda tenho umas coisas para ver.
– Nem pense nisso. Fica para outra ocasião.
– Precisava de devolver as revistas e o livrinho de apontamentos ao avô Maneco.
– Depois, senhor Escrivão. Depois!
– Estava aqui a pensar: como se consegue explicar a beleza do esforço imoderado?
– Mais não!