Hotel Estrela dos Santos, Lisboa
Assim a vislumbrei enquanto fechava a porta e descia as escadas. Mas antes de sumir por completo, ainda me virei e pude ver uma sombra que se movia cuidadosamente, meticulosamente, em silêncio para o 302.
Fui hóspede em Lisboa do Hotel Estrela dos Santos. Muito próximo à Estação dos Anjos, descia-se pela Avenida Almirante Reis a caminho do Terreiro do Paço e do Cais do Sodré. Fiz esse trajeto muitas vezes, ora sob o sol da manhã, outras vezes debaixo de grossa chuva. Confesso que vaguear por aquelas ruas debaixo de chuva era muito mais poético. As lojas, as vitrines, os cafés, as calçadas, a névoa do inverno, a visão a certa altura do Castelo de São Jorge lá em cima, as raparigas a caminho do trabalho, os turistas, os velhos de casaco longo, tudo era poesia. Até os pombos, as gaivotas à beira-mar, o lamento monótono da maré àquela hora da manhã, tudo me encantava.
O meu quarto era frio, voltado para a rua. Não me recordo se havia calefação. Se havia, nunca usei. Cobria-me à noite com grossos cobertores e sentia apenas uma brisa ligeira a brincar timidamente com a cortina. Às vezes se acordava para ir à casa de banho, olhava para a cortina branca e parecia-me que ela ao perceber que eu a estava olhando, aquietava-se e ficava à espreita, como um estranho fantasma pretensioso. Embora algumas pessoas achem isso um absurdo metafísico, eu por minha vez achava aquilo uma das melhores coisas que me podia acontecer naquele ambiente escuro, apenas iluminado pela luz que vinha de fora, fraca, mínima, pousada numa mesinha de canto onde, em silêncio absoluto, o meu relógio de pulso observava com angústia tudo aquilo.
Inúmeras vezes imaginei na minha ausência aquela cortina flutuando pelo quarto, impaciente com a minha demora, conjeturando severas observações à minha pessoa quando eu voltasse. E sempre que eu vinha de um passeio, sobretudo à noite, abria a porta do quarto e não acendia a luz de imediato, mas ficava de espreita para ver se ela se movia da cadeira onde eu supunha que estivesse sentada à minha espera, até a janela onde imperialmente se pendurava como um fantasma branco, por vezes tímido, por vezes enigmático. Mas não, não se movia, nem se achava sentada na cadeira. Sempre estava, para minha tristeza, pendurada como bem devia ser, quieta e monótona. Assim que eu acionava o comutador e o quarto se iluminava, todo o meu encanto era desfeito.
Mas a cama arrumada, os lençóis bem esticados, as toalhas, os cobertores, os travesseiros, tudo respeitando um ritual sagrado e austero, era uma coisa que me enchia a alma de brios e me reanimava o espírito. A minha vontade era ligar para o encarregado de portaria, um senhor muito amável que atendia pela alcunha de Ignácio, e pedir-lhe que transferisse à camareira a minha simpatia por seu talento em arrumar quartos. Mas àquela hora, quase sempre depois das 22:00hs, certamente ela já estaria dormindo cansada, porém orgulhosa de ter um dom a muitos legado.
Nunca a vi pessoalmente, olho no olho. Porém, uma certa manhã em que eu já descia a Almirante Reis, de súbito me lembrei que havia esquecido alguma coisa no quarto, e voltei para buscar. Ao pegar a chave com o Sr. Ignácio (que na verdade era um cartão plástico, mas ponhamos chave para melhor brilho), quando já vencia os dois andares subindo pela escada, notei que passara pelo corredor um vulto negro, apressadamente.
Ao entrar no quarto reparei a cama arrumada pela metade, os lençóis, as toalhas, os cobertores, os travesseiros ainda sobre a mesinha de canto, e um ar fresco de começo de primavera, como um perfume. Era dela, da camareira, certamente. O Sr. Ignácio deve tê-la alertado por telefone que eu subia. Mulher de bom gosto, concluí. Peguei o que voltara para buscar e saí outra vez. Mas antes de fechar a porta, fiquei um instante parado sob o umbral a olhar para dentro e tentei criar (como nos romances de fantasia) a figura da camareira a arrumar o quarto, muito hábil e fiel ao seu trabalho. Pude ver como ela tomando o lençol pela calda fazia um movimento de abanar e lançava-o para cima, e com um olhar meticuloso ficava observando como ele pousava magnificamente sobre a cama, leve como uma gaivota em dia de muito vento na barra. Depois corria a mão sobre ele como que para tirar-lhe as impurezas, as pequenas dobraduras que eu, quando retornasse às tantas da noite, nunca ia reparar. Que tenência, que respeito ao ofício. Daí as toalhas na rabeira da cama, dobradas de uma maneira única, os cobertores da mesma forma, os travesseiros, tudo impecavelmente organizados. E ela de pé no meio do quarto olhando com orgulho a sua obra-prima, as mãos juntas coladas ao peito, como que agradecida a si mesma por tamanha dedicação. Sim, que dedicação, que poesia.
Assim a vislumbrei enquanto fechava a porta e descia as escadas. Mas antes de sumir por completo, ainda me virei e pude ver uma sombra que se movia cuidadosamente, meticulosamente, em silêncio para o 302.