Feliz Natal, Dona Aurora!
Para ela os dias são sempre melhores que aqueles que os precederam porque acredita que no tempo hodierno é quando o sol brilha melhor para todos nós.
A Dona Aurora vive num rés-do-chão e nele construiu a mais horrível marquise das redondezas. Não há volta a dar porque esta marquise é mesmo desgraçada, de um cinzento gasto e que embaraça o verde burguês que entalha o seu prédio. Nela fez um pequeno jardim interior com uma mesinha e cadeiras onde convoca amiúde algumas das suas amigas. Mas o que sobressai com maior desvelo numa das paredes da varanda-marquise é um quadro sinistro, mas ao mesmo tempo intrigante, que retrata a evolução humana: do australopithecus até ao homo sapiens sapiens.
Tudo isto para vos dizer que a Dona Aurora adora a sua marquise, onde passa a maior parte do seu tempo empoleirada numa das janelas abertas, no alto dos seus noventa e dois anos. De manhã cedo, quando tomo o meu café, lá está ela com o seu sorriso admirável atirando:
– Bom dia vizinho! hoje é que vai estar um dia lindo!
Para ela os dias são sempre melhores que aqueles que os precederam porque acredita que no tempo hodierno é quando o sol brilha melhor para todos nós.
Por vezes encontro-a no café do Sr. Vieira, resguardada na sua mesinha e acompanhada com um galão de bons dias. E nas conversas que temos mantido percebi que podemos cravar tempos distintos numa mesma paisagem e emocionarmo-nos como se tivéssemos sido companheiros de meninice. E que a sua descrição de Lamego, onde nasceu e viveu uma mocidade de felicidade, me levou a abrir um atlas de memórias onde me faço acompanhar pelos meus pais e a deter-me perante os 600 passos que compõem a escadaria da Senhora dos Remédios como se fosse uma construção de um lego interminável.
Mas há um acontecimento que a leva sempre de volta a Lamego, apesar da sua vetusta idade: a procissão da Senhora dos Remédios. E quando regressa a Lisboa percebo que foram ajustadas as contas de uma infância feita em cima dos andores vivos, repletos de anjinhos e nuvens de algodão a simular os céus que vemos pintados na entrada da capela de Nossa Senhora da Lapa. E basta-me esta descrição feita do alto da sua marquise para me levar a fechar olhos e lembrar-me dos dias em que assistia estarrecidamente maravilhado para o ritmo dolente de uma procissão de anjinhos e que este balanceamento pautado ao som de uma banda nunca cessará de aclamar o meu atlas de geografias docemente capturadas.
Feliz Natal, Dona Aurora, proprietária de uma marquise onde por estes dias um pai natal alpinista se entalhou para tentar conquistar um sorriso aprisionado de uma meninice beirã.