Elena tem os cabelos negros
Elena tem o cabelo negro. E solto, são unhas, língua, chicotes de mel.
Vollmann lê Chostakovich e a sua Opus 40 à luz do intenso amor que o compositor sentia por Elena, em 1935.
À distância paira Nina Vasilieva.
Ele, o piano. Ela, o violoncelo – “fechados os portões do Danúbio” subterraram-se num metamundo onde uma apoteótica cópula rege os andamentos a espasmos de orgasmos, a pausas curtas e a vibratos de minete.
Elena tem os cabelos negros.
Os movimentos secos, enérgicos, certeiros do piano bordejam o êxtase.
O violoncelo zumbe numa perfeita carícia que se alteia sobre o piano e grita e desce e chora (adivinha Lady Macbeth?).
Há uma entrecortada cadência reerguida de um silêncio, de um sussurro – que andamento tão lasso! – que o piano desperta numa agudez sustenida (sustida?).
São dois corpos num abraço longo.
Elena tem o cabelo negro. E solto, são unhas, língua, chicotes de mel.
Elena Konstantinovskaya não desiste e o chouto persiste, alarga-se e o galope alteia os rins, já uma vibrante lâmina arqueada.
Tanto murmúrio e tanto solto grito. Dmitri teve decerto dois orgasmos.
Elena modulava-se e ora aro tenso, ora lasso, reacendia-se num nervo inflamado até onde o circular das ancas lhe permitia ondular.
Os soluços são hiatos de voz, muda, sem palavras. Quais palavras?
Elena tem os cabelos negros.
Dmitri cerra os olhos (ele é tão míope!) e ergue-se até no som que já visiona ouve tacteia e cheira.
É mais o corpo de Elena, aquele violoncelo túmido, sonoro, rouco, intenso, solitário nas cadências e pungente no reiterado monólogo.
Acerado fecha os olhos com força. Elena agita horizontalmente a cabeça num trespassado ouvido.
A noite é fria. A lareira crepita no braseiro e o violoncelo sua, soa, ecoa.
Dmitri não estava em Leninegrado, mas amava Elena sem paz, só obsessivo como o piano que não vence aquele cello tão de espasmos e soluços tremido.
Elena tem os cabelos negros caídos no rosto de Dmitri, mas em movimento. Não é queda ou poiso, antes um fustigar dos olhos, um segredar aos lábios de um andamento a vir.
Há-de a alvorada romper abrupta e trazer um último segredo, como que os sibilados ecos de Nina, paciente, pela exaustão.
Nina é um lago pálido.
Elena tem os cabelos negros e açoita-o descontrolada, no rosto, com mil vergastas de mel.