Elena tem os cabelos negros

Elena tem o cabelo negro. E solto, são unhas, língua, chicotes de mel.

  • 20:04 | Domingo, 12 de Abril de 2020
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Vollmann lê Chostakovich e a sua Opus 40 à luz do intenso amor que o compositor sentia por Elena, em 1935.

À distância paira Nina Vasilieva.

Ele, o piano. Ela, o violoncelo – “fechados os portões do Danúbio” subterraram-se num metamundo onde uma apoteótica cópula rege os andamentos a espasmos de orgasmos, a pausas curtas e a vibratos de minete.


Elena tem os cabelos negros.

Os movimentos secos, enérgicos, certeiros do piano bordejam o êxtase.

O violoncelo zumbe numa perfeita carícia que se alteia sobre o piano e grita e desce e chora (adivinha Lady Macbeth?).

Há uma entrecortada cadência reerguida de um silêncio, de um sussurro – que andamento tão lasso! – que o piano desperta numa agudez sustenida (sustida?).

São dois corpos num abraço longo.

Elena tem o cabelo negro. E solto, são unhas, língua, chicotes de mel.

Elena Konstantinovskaya não desiste e o chouto persiste, alarga-se e o galope alteia os rins, já uma vibrante lâmina arqueada.

Tanto murmúrio e tanto solto grito. Dmitri teve decerto dois orgasmos.

Elena modulava-se e ora aro tenso, ora lasso, reacendia-se num nervo inflamado até onde o circular das ancas lhe permitia ondular.

Os soluços são hiatos de voz, muda, sem palavras. Quais palavras?

Elena tem os cabelos negros.

Dmitri cerra os olhos (ele é tão míope!) e ergue-se até no som que já visiona ouve tacteia e cheira.

É mais o corpo de Elena, aquele violoncelo túmido, sonoro, rouco, intenso, solitário nas cadências e pungente no reiterado monólogo.

Acerado fecha os olhos com força. Elena agita horizontalmente a cabeça num trespassado ouvido.

A noite é fria. A lareira crepita no braseiro e o violoncelo sua, soa, ecoa.

Dmitri não estava em Leninegrado, mas amava Elena sem paz, só obsessivo como o piano que não vence aquele cello tão de espasmos e soluços tremido.

Elena tem os cabelos negros caídos no rosto de Dmitri, mas em movimento. Não é queda ou poiso, antes um fustigar dos olhos, um segredar aos lábios de um andamento a vir.

Há-de a alvorada romper abrupta e trazer um último segredo, como que os sibilados ecos de Nina, paciente, pela exaustão.

Nina é um lago pálido.

Elena tem os cabelos negros e açoita-o descontrolada, no rosto, com mil vergastas de mel.

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