É o outono

Mas vieste. Usavas um longo casaco vermelho, tinhas os cabelos soltos, os lábios de uma cor rosa, e os olhos, ah,,,

  • 18:38 | Domingo, 01 de Março de 2020
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O dia amanhecera nublado, o sol não conseguiu atravessar a cortina de fumaça que cobria a cidade, e havia uma larga promessa de chuva no ar. No entanto vieste. Desde as primeiras horas do amanhecer fiquei à tua espera. Ainda deitado em minha cama refiz o caminho de meu quarto à Rua Silva Ferreira, 23, 3º dto., em Celas, até a tua casa, em Ponte do Sótão. Lá, de pé à janela, a olhar o pequeno rio do meio, as hortas, os pinheiros, a capela, eu ouvi o sino de tua aldeia e a minha alma sorriu. Como bem me disseste um dia que ele toca de hora em hora, eu me pus a imaginar como é que se consegue dormir à noite com aquele som metálico puindo o tempo e a hora, numa intermitente melodia sintética. A mim que sou poeta, não sei se suportaria. A minha alma já faz tanto barulho…

Mas vieste. Usavas um longo casaco vermelho, tinhas os cabelos soltos, os lábios de uma cor rosa, e os olhos, ah, por Deus, com o céu nublado àquela hora da manhã, estavam mais azuis do que o normal. Ao chegar me deste de presente o perfume de todas as flores colhidas no caminho, o cheiro suave dos campos e dos rios, a longa viração vinda do oceano atlântico ao pé de Mira, a voz divina das plantas e das árvores que te saudaram enquanto passavas. Deste-me de presente a tua mão, o teu sorriso, e a tua presença. E no meu coração eu agradeci de uma maneira única a tua chegada. No meu coração eu disse em silêncio que sem ti esta cidade é abstrata, que sem ti Coimbra é apenas uma ideia, uma lembrança perdida no tempo.

Era domingo, tudo estava quieto, apenas as devotas seguiam em rancho para o Mosteiro das Celas de Vimaranes, muito silenciosas e muito devotas, com seus chapéus e seus rosários, algumas ainda de preto como convém à devoção. Não as seguimos. O destino delas não era o nosso destino. O propósito delas era alcançar a glória máxima, e o nosso se resumia em tomar o pequeno almoço.


Fomos ao Tosta Rica à Rua Parreiras, pediste um abatanado com a chávena escaldada, comeste uma torrada à moda da casa, e eu, à luz dos teus olhos, me sentia o homem mais feliz do mundo.

Dali partimos sem destino certo. Apenas me disseste que eu estava na direção do leme. O caminho que eu seguisse me acompanharias. Então eu me senti o capitão de um antiquíssimo navio, e eras a minha predileta. No mar da vida apontei em direção ao inexistente e pedi apenas que tu confiasses cegamente nas minhas velas; e confiaste. As águas eram calmas apesar da densa bruma, da promessa de chuva, do desconhecido à nossa frente. Não tínhamos medo de nada; eu não tinha medo porque estavas comigo, tu não tinhas medo porque nasceste a irmã das águas, aquela que acalma as marés com um simples movimento de olhos, com um acenar de mãos. E imersos em silêncio seguimos a direção do horizonte, lá onde o sol se ergue, imperial, como um rei. Seguimos sem temor porque o nosso navio era levado pelos ventos da esperança.

Então apontei a direção do Jardim dos Poetas. Disseste Penedo da Saudade. Eu tornei a chamá-lo de Jardim. Ficaste em silêncio, depois, com olhos mui piedosos, me perguntaste: “Por que é que me contrarias?”. “Não anjo, era um jardim, e nele nasceu uma pequena rosa à beira de um barranco, numa grande pedra. Veio a primavera, veio o verão, veio o outono e depois o longo inverno, e ela resistiu. Mas um dia um pássaro pousou perto dela e cantou. Era manhã bem cedo. Suas penas brilhavam com a primeira luz do dia, ainda molhadas de gotas de orvalho. Pousou perto dela e cantou, depois partiu. Então a rosa desfaleceu. Amor era o seu nome. Havia ali muitos poetas que eram dados à sua contemplação diária. Mas apenas um deles, apenas um, quando a rosa por fim morreu, escreveu com o sangue da sua alma o epitáfio da flor, e deu o nome àquela pedra de penedo, o Penedo da Saudade. E assim ficou até aos dias de hoje, gravado no mármore da memória de quem muito já amou”. Então riste muito de mim, como que desabonando a minha história. E o teu riso alegre acordou todo o Penedo, as flores, a fonte, as pedras, as árvores. Tudo era poesia com o teu sorriso.

Apontei finalmente a direção do Parque Verde do Mondego. Seguimos em silêncio. Mas os teus olhos continuavam a sorrir de minha história, dissimulados e belos, cercados pela bruma da manhã. No entanto nada dizíamos um ao outro, não havia necessidade de uma única palavra. Os gestos suaves de nossas mãos que se tocavam mutuamente, intimamente, falavam por nós, diziam tudo aquilo que os nossos corações teimavam em guardar num baú de segredos. E continuavas sendo a minha predileta.

O chão do Parque estava todo coberto de folhas coloridas, umas amarelas, outras avermelhadas, outras ainda de um tom cinza escuro. “É o outono”, me disseste. Ouvir-te em meio às folhas, debaixo dos grandes plátanos, à beira do Rio Mondego dizer “é o outono”, foi como se o espírito divino criador de todas as coisas me sussurrasse promessas ao pé do ouvido. Não sabes a alegria que me deste, a ternura que fizeste nascer em meu coração e em minha alma. Caminhamos vagarosamente olhando cada detalhe, cada mínimo espaço, e tudo parecia eterno, mesmo as folhas mortas, mesmo as pequenas flores com as suas pétalas caídas. O chão molhado retinha os nossos passos, o reflexo nas poças dágua refletiam não a mim e nem a ti, mas a um anjo e a um poeta, e segurando a tua mão era como se eu segurasse o leme que conduzia a minha vida, o meu destino.

Nos sentamos num daqueles bancos de madeira, vermelho como o teu casaco, e o tempo à nossa volta parecia imóvel, tudo estava quieto e calmo. Havia a promessa de chuva, a bruma aos poucos se dissipava com a insistência do sol, e as folhas continuavam a cair. “É o outono”, a tua voz continuava a me dizer em um tom poético. E dentro de mim, no fundo de mim, uma voz amiga das manhãs e das águas, repetia intermitente como o sino de tua aldeia: “Obrigado, Isabel, infinitamente obrigado por tua presença amiga”.

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