Como desenhar um cisne

Até esse dia, em que eu pesava 20 quilos e tinha franja, a minha avó tinha vivido comigo. Desde bebé, era ela que me mudava as fraldas, que me vestia, que me dava comida.

  • 21:14 | Domingo, 22 de Março de 2020
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No dia do funeral da minha avó, ela já tinha morrido há muito tempo. Pelo menos para mim. Para mim a minha avó morreu quando eu pesava 20 quilos e tinha o cabelo à tigela. Apesar de só ter 20 quilos eu já sabia desenhar cisnes porque a minha avó me tinha ensinado. Desenhar um cisne é muito fácil. Basta pegar no lápis e fazer um 2 muito grande, um número quase do tamanho da nossa mão (se formos crianças). Depois, pomos o lápis na ponta de cima do 2 e acrescentamos-lhe o bico e a barriga. No final, se quisermos, podemos fazer um traço ondulado por baixo do cisne. Esse traço é a água onde os cisnes gostam de nadar. A água de um lago.

Até esse dia, em que eu pesava 20 quilos e tinha franja, a minha avó tinha vivido comigo. Desde bebé, era ela que me mudava as fraldas, que me vestia, que me dava comida. Era ela que soprava o leite quente e o mudava de uma caneca para a outra as vezes que fossem necessárias até atingir a temperatura que não me iria queimar. A minha avó pouco falava, mas estava sempre ali, ao meu lado, atenta ao que a minha meninice precisasse.

Uma vez quebrou, de propósito (e isto é um segredo nosso), um termómetro para eu poder brincar com as bolinhas de mercúrio que se tentavam esconder na alcatifa até eu as conseguir juntar todas e as esmagar novamente num pequeno big-bang. A minha avó não sabia que o mercúrio faz cancro. Deve ter morrido sem saber porque, na altura, não se falava nessas coisas e toda a gente tinha termómetros daqueles.


A avó gostava de ver fotografias comigo, sobretudo as minhas fotografias de bebé. Ela tinha orgulho especial numa foto onde eu estou vestida com um babygrow às risquinhas. Contava ela que, nesse dia, o meu pai chegou a casa e disse: «Está tão bonita a minha filha!». E foi buscar a máquina para tirar a fotografia. A minha avó ficava vaidosa por mim. Ela nunca levantava a voz nem gritava. Nunca me batia. Eu portava-me sempre bem porque a minha avó nunca me ralhava. Ou talvez fosse ao contrário.

No dia em que se foi embora, a minha avó fez as malas às escondidas, mas quando ouvi a porta da rua percebi tudo. Gritei e chorei. Lembro-me de não conseguir respirar. Do meu pai a puxar-me pelos braços. Foi preciso muita força para me impedir de ir pelo prédio fora, pelas escadas, pela rua afora atrás da minha avó. Por mim, o meu pai podia ter-me arrancado um braço inteiro. Teria sido melhor do que deixar a minha avó partir. Mas com a força certa, empurram-me para dentro de casa e a porta fechou-se.

Voltei a vê-la nessa outra casa (que não era a nossa). Havia lá dois irmãos, mas não éramos eu e o meu irmão. Tinham o cabelo escuro e eram mais pequenos. Os filhos do meu tio, o irmão da minha mãe. A minha casa é que era a casa da minha avó. Aquela não era a minha casa, nem a casa da minha avó. E aquela pessoa já não era a minha avó. Tinha o mesmo cabelo curto um pouco armado e os mesmos óculos grossos de massa, mas não era ela.

A minha avó usava uns óculos de massa grossos que faziam os seus olhos muito pequenos, mas ela tinha uns olhos azuis bonitos e tirava sempre os óculos quando fazíamos fotografias. Só tenho uma fotografia minha e da minha avó. Estamos num jardim e eu ainda sou bebé. Estamos sentadas na relva, a minha avó tem uma flor, está a sorrir, e está sem óculos. Não se vê bem os olhos porque estamos longe. A minha avó usava umas calças de tecido com vinco. Usou sempre esse modelo de calças. E nota-se a barriga redonda que a matou.

Fui uma única vez, só uma, visitar a minha avó ao lar. Demorei muito tempo a encontrar a casa, uma vivenda amarelada nos subúrbios. Eu tinha ido até lá na minha mota. Encontrei-a na cozinha. A minha avó estava a descascar batatas. Disse-me que não conseguia falar com as outras velhas porque eram velhas demais. Mostrou-me o quartinho dela, com duas camas individuais. Ela não gostava da outra velhota. Disse-me que lhe tinha roubado coisas. Estive o tempo todo com o capacete na mão, pronta para sair. Não sabia quem era aquela pessoa que estava ali a descascar batatas e que se fazia passar pela minha avó.

Nunca percebi porque é que a minha avó morreu. Uma coisa no coração.

Antes de ir para o lar, a minha avó ainda voltou a nossa casa. Nessa altura eu já não era a menina dela. Já não era menina de todo. Também ainda não era adulta. Tinha corpo de mulher mas ainda não era adulta. Não era ninguém. Só queria que gostassem de mim, apesar de me sentir gorda e feia. Queria ter amigos, de preferência que fumassem cigarros e que soubessem tudo sobre música e que andassem de skate e dissessem piadas de que toda a gente ria.

Um dia, quando cheguei a casa, ela não tinha os óculos e estava muito arranjada com os lábios pintados. A minha avó só tirava os óculos quando queria ficar mais bonita porque sem eles não via nada. Estranhei. Confessou-me que tinha posto um anúncio no jornal para encontrar um marido. Disse isso numa voz apagada e olhando-me de lado como fazem os cães quando fazem asneiras. Eu obriguei-a a repetir porque não percebi à primeira. Essa neta (que já não era uma criança mas também não era uma mulher e que já tinha aprendido a fumar) riu-se daquela ideia estapafúrdia e falou nisso ao telefone com uma amiga.

A minha avó pegou na sua timidez e na sua carteirinha metálica e foi até ao quiosque com o dinheiro necessário para publicar o anúncio. E terá levado na mão um papel onde terá escrito à mão a mensagem: “Senhora procura cavalheiro honesto e gentil para relação séria”. Não sei se foi isso que escreveu. Isto é o que eu imagino.

Quantas coisas eu daria para voltar atrás no tempo e poder ajudá-la nessa missão amorosa. Escolher com ela uma roupa bonita que não fossem aquelas calças com vinco que lhe realçavam a barriga. E ajudá-la com a maquilhagem certa e talvez ir disfarçadamente até ao café do encontro, ficar na mesa ao lado para avaliar o pretendente. Eu podia ter ajudado e púnhamos as duas anúncios em vários jornais e havia de aparecer alguém e assim ela não teria ido para o lar, nem tinha que descascar batatas e choramingar por causa das outras velhas demasiado velhas. Talvez, até, não tivesse tido aquele ataque (que acho que foi no coração, nunca percebi bem) que a matou. A minha avó não arranjou namorado. Pouco depois foi para o lar.

Não chorei no dia do enterro. Estavam outras pessoas a chorar por mim. Um choro carpideiro que ocupava tudo e se entranhava à força na nossa cabeça como aquelas músicas que as pessoas põem a tocar muito alto na praia. O choro dirigia-se àquele caixão, onde estava o corpo de alguém que não era a minha avó.

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