As baionetas do picoto (Mouções, Aguiar da Beira)

Arrombada a porta da capelinha, um soldado mais façanhudo, de hirsutas sobrancelhas alaranjadas, pegou no santo que, timidamente se encolhia no seu despretensioso altar de pedra, e atirou-o para dentro do bornal misturando-o com um resto de pão seco e umas maçãs colhidas nas veredas de Gradiz. “Este já cá canta!- berrou. Há-de valer para alguma coisa!”

  • 19:27 | Sábado, 12 de Dezembro de 2020
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Há mais de duzentos anos as botas cardadas dos soldados de Napoleão Bonaparte ouviam-se por toda a Europa, dos longínquos Urais às planuras mais ocidentais rasando quase o deserto africano. Bonaparte, o imperador dos franceses, queria impor a bandeira com a águia bicéfala um pouco por todo o lado. Queria mesmo passar o canal da Mancha e subjugar o grande império naval inglês. Se barcos não tinha, restava-lhe o estrangulamento económico do rival. Ordenou então o Bloqueio Continental que impedia o acesso de navios ingleses aos portos europeus.

Em Novembro de 1806, aquando daquele decreto, Portugal, que ainda não sentira o peso do exército napoleónico e para mais era antigo aliado de Inglaterra, não aceitou a ordem do Imperador dos franceses que queria, a todo o custo, imperar sobre toda a Europa. Ora, tamanha ousadia não haveria de ficar sem castigo… As botas cardadas rumaram bem ao sul e em 1807 entraram com tanto alarido em terras lusas, que a família real, temendo que lhe acontecesse o mesmo que a Maria Antonieta, zarpou para o Brasil.

Entrado em Portugal, o exército de Napoleão fez tanta razia, – roubos, estupros, mortes – que pôs o país em sobressalto e medo, mas também em resistência. Foi assim em 1807, em 1809 e em 1810. Neste ano, o exército comandado pelo laureado e famoso General Massena, invadiu pela última vez Portugal. De Almeida, que cercou e dominou, pretendeu chegar à capital do reino, sulcando os velhos caminhos beirãos. Mas há tempo já que os portugueses não estavam sós contra as investidas dos franceses. Inglaterra colocara-se ao lado do velho aliado e um exército anglo-português fora constituído… uma amizade abençoada pelo beijo da serpente, mas esta questão não é agora para aqui chamada …

Falávamos, portanto, de 1810, quando o exército invasor comandado por Massena se deslocava por terras da Beira em direcção a Lisboa, onde nunca chegará… Conta-se então, que um braço desse exército, em trânsito para Viseu, desceu à aldeia de Gradiz, encaixada num amplo e vistoso vale, na vertente sul da serra da Lapa, e subiu a íngreme encosta que o levou a um ventoso, frio e pobre lugarejo, de seu nome Mouções ou Monções, como o quiserem nomear. As suas gentes, que eram poucas e conheciam bem a pobreza mitigada por uma côdea de centeio e um naco de queijo de cabra, ao saberem que os franceses andavam aquelas terras, semeando o terror, a destruição e a morte, pegaram nos seus parcos haveres, e os gritos: “fujam que lá vêm os franceses! fujam que lá vêm os franceses!”, correram a esconder-se nas grutas e lapas espalhadas pela serrania. Não foi por acaso que numa lapa esteve escondida durante tantos séculos a senhora que agora brilha na igreja dos jesuítas? No santuário construído sobre a lapinha que a escondeu de outras pilhagens?


Ora, quando os soldados de Napoleão, a quem chamavam franceses por o seu supremo general ser imperador de França, chegaram a Mouções, se bem que tivessem topado escancaradas as portas dos humildes cardanhos, não encontraram nada que lhes matasse a fome, nem tão pouco qualquer objecto digno de valor, tão pobres eram os seus moradores. Enraivecidos, a fome é má conselheira, a sede nem tanto, pois puderam matar a sede na água cristalina e pura que jorra das fragas, enraivecidos, dizia eu, destruíram tudo o que vislumbravam em volta, não poupando a singela ermida em honra de Santo António.

Arrombada a porta da capelinha, um soldado mais façanhudo, de hirsutas sobrancelhas alaranjadas, pegou no santo que, timidamente se encolhia no seu despretensioso altar de pedra, e atirou-o para dentro do bornal misturando-o com um resto de pão seco e umas maçãs colhidas nas veredas de Gradiz. “Este já cá canta!- berrou. Há-de valer para alguma coisa!”

Ora, estava-se pelo fim da manhã e o sol batia vigorosamente nos fraguedos húmidos ainda da maresia da noite anterior, reverberando laivos como metal incandescente. Os soldados franceses, cansados da subida e satisfeitos das tropelias, sentaram ao acaso para descansar. Um deles, mais atento e espevitado, lançou um olhar para o caminho que subia de Gradiz e, ao longe, pareceu-lhe que faiscavam as baionetas dos soldados de Wellington. Temeroso, levantou-se num ápice berrando para os camaradas de armas: “Corram, que sobem a serra as tropas portuguesas e inglesas, já vejo ao fundo as baionetas. Fujamos daqui!” E cada um, como pôde, soube e conseguiu, esgueirou-se entre fraguedo da serra da Lapa, escondendo-se entre o carvalhal e castanhal que aí era muito basto.

Na fuga, o soldado larápio de hirsutas sobrancelhas alaranjadas arremessou ao acaso a imagem do santo que caiu em cima de uma laje. Aí ficou, inteirinha, sem qualquer mossa, até que, aquietado o medo, as gentes de Mouções regressaram aos seus cardanhos e, em piedosa procissão, depuseram o Santo António no seu altarzinho de onde tinha sido pilhado.

E perguntais-me: “de que tiveram medo os franceses? Os soldados anglo-portugueses vinham mesmo no seu encalço?” Nada! Foram as lajes húmidas que faiscavam tocadas pelos raios do sol e pareciam-se com as pontas das baionetas…

 

 

 

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