A MARAVILHOSA HISTÓRIA DA CASTANHA MARTAINHA

  Era uma vez!… Era assim que a minha avó Beatriz começava todas as histórias. A minha avó Beatriz era também avó da Silvandira, do Vergílio, da Isabel, do Valentim. E era também avó de outros netos, que eram nossos primos. Mas os nossos primos estavam longe ou já tinham outra idade e não ouviram […]

  • 13:02 | Domingo, 26 de Março de 2017
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Era uma vez!…

Era assim que a minha avó Beatriz começava todas as histórias.


A minha avó Beatriz era também avó da Silvandira, do Vergílio, da Isabel, do Valentim. E era também avó de outros netos, que eram nossos primos. Mas os nossos primos estavam longe ou já tinham outra idade e não ouviram a avó Beatriz contar certas histórias.

Uma das histórias que a avó contava era “a história da castanha martaínha”.

Era uma vez!… As histórias da avó começavam sempre assim.

Era uma vez Adão e Eva!… Adão e Eva eram os nossos primeiros pais!… Contava ela.

Adão e Eva habitaram durante muitos anos num lugar lindo que se chamava Jardim do Paraíso.

Javé, também conhecido como Eloim, era o Senhor desse Jardim que mais parecia ser uma grande Quinta cultivada.

Javé vinha todas as tardes ao Jardim. Gostava de conversar com Eva e com Adão pela tarde fora.

 

Hoje já ninguém sabe onde ficava esse Jardim, mas era longe da nossa terra, dizia a nossa avó.

Nesse Jardim havia toda a espécie de árvores de fruto.

Javé disse a Eva e a Adão que podiam comer de todos os frutos das árvores do Jardim. Não podiam comer os frutos de uma árvore que se chamava macieira e que tinham o nome de maçãs.

Eva, num qualquer dia de Outono, passou junto do pomar das macieiras e ao sentir o cheirinho bom das maçãs maduras colheu duas. Comeu uma. Adão mal provou a outra que lhe deu.

Javé apareceu pelo Jardim, como de costume, nas horas da tardinha.

Adão e Eva, sentados par a par num banco do Jardim, estavam tristes nessa hora e Javé perguntou a um e outro o que foi que aconteceu. E eles, com vergonha, lhe disseram que tinham comido as maçãs.

Javé não se zangou. Mas disse a Eva e a Adão que tinham de ir embora do Jardim.

Levou os dois até à porta grande do Jardim, mostrou-lhes a largueza da Terra que dali se avistava e disse a Adão que lha dava para a cultivar. Daria frutos abundantes, mas teria de regá-la com suor. E mais disse a Eva e a Adão que um dia os voltaria aceitar.

Deu a um e outro uma pele de cordeiro para os agasalhar, que o Inverno estava à porta.

Adão trouxe apenas, aos ombros, uma enxada. Eva encheu a abada* com as sementes das árvores do Jardim que ela secava. Num dos bolsos guardou uma mão-cheia de castanhas martaínhas. Javé entregou-lhe ainda uma longal.

 

Eva e Adão foram andando, andando, por essa terra de ninguém que Javé lhes confiara. Aprenderam a contar os dias pelo Sol. Mas o caminho que ainda não estava riscado, parecia não ter fim.

Pousavam aqui e além para fazer a sementeira. Adão cavava a terra. E o suor caía em bagas do rosto para o chão. Eva enterrava as sementes com a mão nas pocinhas da terra já molhada.

Armavam depois uma tenda de ramagem e ficavam à espera do Outono para fazerem a colheita.

À saída do Jardim, num lugar ainda deserto, plantaram tamareiras e palmeiras onde acharam uma fonte. E chamaram Oásis a esse lugar.

Os filhos entretanto começaram a nascer.

Abel foi o primeiro. A seguir veio Caim. Depois Set e tantos mais, que até a conta Eva perdeu.

Aqui e além talhavam uma leira e deixavam um dos filhos com a obrigação de a lavrar.

Abel, o mais velho, preferiu ter ovelhas para guardar. Quis ser pastor. Caim preferiu lavrar a terra. Antes quis ser lavrador.

Eva e Adão lá iam caminhando, que o destino era chegar até ao mar.

Demoraram anos na viagem. Com os filhos e os gados caminhavam devagar.

À beira do caminho plantavam oliveiras, vinha, laranjeiras e figueiras. Eva, às vezes, pedia a Adão que plantasse uma roseira.

De tanto caminhar perderam a conta dos seus dias.

Adão, a dada altura, sentiu que ia já longe na idade. Eva era uns anos mais nova, mas os trabalhos e os filhos tinham cavado rugas no seu rosto. Ficaram sempre lindos os seus olhos de menina, dizia quem a viu.

                 A “TERRA DA CASTANHA”

Certo dia, contava a avó, Adão e Eva passaram aqui na nossa terra. Vinham já tão cansados de andar que decidiram armar as tendas e ficar.

Descarregaram dos jumentos os odres de azeite e de vinho e os sacos de farinha que traziam para cozer o pão.

Nesse tempo não havia ainda castanheiros. Havia urze, giestas, mimosas e pés de rosmaninho. E foi com lenha de urze e de giesta que acenderam junto à tenda uma fogueira.

O Inverno estava à porta. A chuva não parava de cair. Ouvia-se nas tendas o soprar da ventania. Eva mal conseguia adormecer.

Eva e Adão tiveram de esperar para fazer a sementeira.

Quando as mimosas começaram a abrir, Eva tirou de uma bolsinha que prendera na cintura uma mão-cheia de castanhas martaínhas e mostrou-as a Adão. Adão achou que aquela terra era boa e pediu aos filhos para fazer a sementeira.

Escolheram as encostas onde batia o vento Norte. Eva despejou na cesta breza** as castanhas martaínhas, colocou dentro também uma longal e os filhos lá andaram, serra fora, enterrando as castanhas nas pocinhas.

Adão e Eva ainda as viram rebentar no final da Primavera. Foram eles ainda quem deu o nome aos soutos do Chão dos Castanheiros, da Barreira, da Seara ou S. Miguel. Depois foram-se embora, que o seu destino era ir até ao mar.

Ficaram ali alguns dos filhos. Acharam bons os ares limpos do lugar.

Os castanheiros demoraram trezentos anos a crescer.

As castanhas começavam a cair no Outono já entrado. Caiam, de mansinho, ao soprar dos ventinhos da manhã.

Minha avó, que era também neta de Adão, contava ela, tinha um souto na Quinta do Valbom. E havia lá, muito velhinho, um castanheiro que ainda viera dos tempos de Adão, esse avô muito distante.

Minha avó era lavradeira, como Eva.

De manhã lá ia ela para os soutos e com ela, ainda menina, minha mãe. Levavam no braço a cesta breza e dentro dela o maço de britar.

Ao meio dia ia lá ter um dos filhos, com o burrico. Minha avó carregava na albarda os dois sacos de castanhas. À cabeça trazia ainda a cesta cheia.

A avó cozia as castanhas ao lume da fogueira em púcaras de barro que trocava, no Adro, aos louceiros ou em panelas de ferro de três pés que comprava numa feira.

Os homens comiam castanhas, de manhã, sentados à lareira, antes de partirem para as lavras ou a poda das videiras. Tiravam as castanhas da panela, uma a uma, com a mão. Sabiam bem, assim quentinhas, diziam eles para a avó.

Em Abril, ao começar da sementeira do milho, do linho, das batatas, do feijão, a avó fazia caldo de castanhas para os homens da lavoura. E fazia o mesmo caldo, já no verão, para o rancho dos ceifeiros e depois, mais adiante, o mesmo caldo era servido aos malhadores das pousas***de centeio.

Os homens sentavam-se no chão, à sombra de um palheiro, e seguravam em concha, com a mão, a malga cheia.

As castanhas que a avó guardava até ao Verão eram secas no Inverno, no caniço.

O caniço uma espécie de tabuleiro de canas ou varinhas entrançadas suspenso, na cozinha, sobre o lume da lareira. Cabia lá uma rasa de castanhas e era ali que elas ficavam, quentinhas, a secar um mês inteiro. Batiam-se depois, num cesto, com um maço de madeira para tirar a casca. E chamavam-se então, as castanhas já limpinhas, castanhas secas ou piladas.

A avó enchia um saco de linho e guardava-as numa arca de madeira.

No Verão a avó dava, às vezes, como esmola, uma mão-cheia de castanhas, das piladas, aos pobres que andavam pelas portas, a pedir.

No tempo de Natal enchia os bolsos aos rapazes que iam cantar à sua porta as Janeiras ou os Reis. E eles lá seguiam, rua fora, a rilhar as tais castanhas, tão docinhas.

Em Novembro havia o S. Martinho. A gente sabia a sua história que a contara a nossa avó.

Nesse dia fazia-se um magusto na eira da avó. E era festa.

Juntava-se a gente da aldeia. A avó despejava no lajedo uma rasa de castanhas. Os homens traziam palha dos palheiros, aos braçados. E acendiam o lume.

As castanhas assavam lentamente e quando já estavam bem quentinhas começavam a estalar.

Os homens, as mulheres, o rapazio, apanhavam as castanhas já assadas do lajedo, sopravam-lhe nas mãos para arrefecer e começavam, entre risos, a comer.

Os homens bebiam pela vez primeira o vinho novo. O rapazio corria pela eira com a cara enfarruscada

A avó contou também uma história da castanha martaínha que tinha a ver com as lagartas. E foi assim.

Uma vez, dizia ela, ninguém soube a razão, ninguém se lembrava desse tempo, deu nos soutos a praga da lagarta. E durante muitos anos não houve castanhas para alimento. Muita gente passou fome. Porque as castanhas eram pão naquele tempo.

Nesse tempo a Senhora da Lapa tinha já na serra uma capela, disse a avó

A gente das aldeias que a lagarta ameaçou prometeu ir à Senhora da Lapa, em procissão, todos os anos, na primeira festa de Verão, se morressem as lagartas.

A Senhora da Lapa ouviu as preces dessa gente, dizia a avó, e nunca mais as lagartas fizeram mal aos castanheiros.

Hoje ainda há uma aldeia que vai, em romaria, à Senhora da Lapa. Os homens que carregam o andor e os homens que transportam a bandeira levam ao pescoço um rosário de castanhas.

Falta só contar a história bonita das “folechas”, dizia a nossa avó.

As folechas, também conhecidas pelo nome de bonecas, são castanhas que não trazem dentro delas nada para comer. É como se fossem pele e osso, costumava a avó dizer.

As bonecas eram feitas de casca fininha e saiam assim armadas, ao jeito de um barquinho, de dentro do ouriço. Era como se ali tivessem ficado um tempo sem fim, apertadinhas, sem espaço para poder crescer. Mas os meninos gostavam delas mesmo assim. Gostavam delas para brincar.

Eram assim as brincadeiras que tinham lugar na cozinha da avó e que eu joguei com os meus primos:

Os meninos sentavam-se num banquinho, à lareira. Colocavam um pouco de saliva na face cavada da folecha, se assim se pode dizer, varriam um cantinho da cinza da fogueira e colocavam a boneca na pedra do lar.

A boneca começava a inchar, a inchar com o calor e quando já parecia uma castanha de verdade, estalava, com estrondo, de repente. E os meninos então batiam palmas de contentes.

A outra história não é bem de brincadeira, mas é também de divertir.

A avó contava assim:

Quando uma mãe estava quase para dar à luz e se queria saber se o filho que ia nascer seria menino ou menina, fazia tal e qual como eu vou dizer.

Sentava-se num banquinho, à lareira e fazia como os meninos a brincar. Colocava um pouco de saliva na superfície côncava da boneca. E colocava a boneca, de mansinho, no chão quente da lareira. Se a boneca estalasse como os foguetes numa festa, seria menino o ser que estava para nascer. Se o ventre cheio da boneca esvaziasse devagarinho, devagarinho, seria menina o novo ser.

A gente acreditava nas histórias lindas da avó.

 

* * *

No tempo da avó não havia ainda as queijadas de castanha, em Sernancelhe.

Nem os ouriços de castanha, em Penedono, ali ao pé.

Não havia a Confraria da Castanha.

Se houvesse talvez ela quisesse ser “confrade” como nós e sentar-se à nossa mesa.

 

Alberto Correia

 

GLOSSÁRIO:

*Abada – Diz-se do avental dobrado e preso na cintura para transporte

de frutos, sementes, ervagens…

**Pousa – Conjunto de cinco molhos ou feixes de cereal.

***Cesta breza – Cesta feita de rolinhos de palha ligados por cascas de silva.

 

(Fotos de José Alfredo)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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