A lenda da Senhora da Lapa (aldeia da Lapa, Sernancelhe)

Horrorizada, Joana gritou: - “O que fez, minha mãe! é Nossa Senhora!”. E ao mesmo tempo que Joana conquistava a fala, o braço sacrílego da mãe caía inanimado. Perante o mistério, mãe e filha, ajoelhadas diante a senhora a quem as chamas não conseguiram lamber, quedaram-se a rezar. E se à menina foi dada a faculdade de falar, à mulher retornou a agilidade do braço.

  • 22:56 | Quarta-feira, 09 de Dezembro de 2020
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Como quase todas as lendas que se prendem com aparições marianas, a senhora revela-se a crianças pobres, a maior parte das vezes pequenitos e pequenitas que apascentam rebanhos na solidão das fragas e dos montes. A lenda da senhora da Lapa não foge à regra. Com doze anos, Joana era uma pastorinha muda que, entre penedias, guardava as suas ovelhas.

Mal rompia o dia, quer o tarô enregelasse os corpos vestidos de áspero burel quer o sol secasse campos e fontes, com um pedaço de pão e queijo já duro para rilhar guardado no fundo do alforge coçado, cajado na mão prematuramente calejada e a roca adornando a cintura esbelta de zagala adolescente, Joana partia de Quintela, a aldeia natal, percorrendo lentamente as veredas por onde despontavam as linhas de água que, muitos quilómetros percorridos, tornados riachos e rios, repousavam no Oceano Atlântico. Mas isso não o sabia Joana, menina solitária a quem a força do falar fora roubada no ventre da mãe. Sabia sim que a água cristalina e pura nascida das fragas matava a sede mais empedernida.

Naquele dia o frio apertava. Joana, embrulhando-se mais na capucha de burel escuro, entrou na gruta acautelada por um feixe de silvas bravias. Deixou que os olhos se habituassem ao escuro e sentou-se numa pedra lisa livre do musgo que atapetava os penedos em volta. Maquinalmente pôs-se a fiar. Logo os olhos espertos descansaram num recanto onde repousava uma pequena figura de mulher, mais parecendo uma boneca que só as ricas e fidalgas podiam ter. Desembaraçando-se da roca e do fuso, pegou na figura e, docemente, escondeu-a na cestinha de junco onde guardava os novelos de lã fiada, deitando-a numa cama de flores frescas apanhadas ao acaso.

Ora, conta-se também que, muitos séculos antes, aí pelo ano 982, as tropas de Almançor, em trânsito pelo norte peninsular e de regresso ao sul, punham em alvoroço as terras da Beira Alta. Depois de terem atravessado o Douro e destruído Lamego, avançaram para Trancoso, não sem antes terem arrasado o convento das Arcas, martirizando muitas das religiosas que aí tinham professado. Depois de atravessada a serra da Pêra, os soldados de general mouro depararam-se com um outro convento feminino, o de Sismiro, já em território de Aguiar da Beira. Como nas Arcas, muitas das freiras foram mortas. As que conseguiram escapar, embrenhando-se no mato, correndo entre penhascos, tropeçando em pedras agrestes, saltando temporários arroios, picando-se em tojos e silvas, transportavam escondida entre as amplas vestes uma imagem santificada de Maria. Exauridas de cansaço, fome e sede, acabaram por encontrar abrigo numa lapa onde, secretamente, esconderam a pequena estátua da Senhora.


Das freiras nada mais se soube. A senhora, essa, repousou silenciosamente na lapa cerca de quinhentos anos até que, em 1498, a pastora a guardou na cestinha adornada de flores campestres.

Durante dias e dias, a senhora só brilhou para Joana, que a protegia de olhares estranhos. Mas a menina deu em ensimesmar, esquecendo-se de levar as ovelhas a pastos mais tenros e verdes. Porém, as rezes, mesmo tasquinhando os caules secos que restavam entre pedras, continuavam nédias e lustrosas, causando estranheza às gentes de Quintela.

A mãe de Joana, uma robusta aldeã com pêlo na venta, farta do alheamento da rapariga e com os ouvidos prenhes do murmurar do povo, investiu contra a cestinha e, intempestivamente, tirou da cama improvisada a pequena senhora lançando-a à fogueira.

Horrorizada, Joana gritou: – “O que fez, minha mãe! é Nossa Senhora!”. E ao mesmo tempo que Joana conquistava a fala, o braço sacrílego da mãe caía inanimado. Perante o mistério, mãe e filha, ajoelhadas diante a senhora a quem as chamas não conseguiram lamber, quedaram-se a rezar. E se à menina foi dada a faculdade de falar, à mulher retornou a agilidade do braço.

“Milagre, milagre”, ecoava pelas ruas de Quintela. Ao ouvir tamanho alarido, o abade, que andava pelos matos a caçar perdizes, correu pressuroso para a aldeia. Topando com a vetusta imagem, levou-a para a Igreja matriz, pensando em encomendar aos santeiros de Lamego um novo altar para entronizar a senhora. Mas, por obra de magia, a imagem desaparecia da igreja de Quintela para reaparecer na lapa onde tinha dormido durante quinhentos anos. E tantas vezes tal fenómeno aconteceu, que as gentes da terra perceberem que a santa estava a indicar-lhes a morada que queria para si. E em procissão encabeçada por Joana, levaram-na de regresso a casa.

Ao eco das maravilhas que aconteciam lá para os lados de Quintela, – a mudinha que falava, o braço desembaraçado que ficou inerte e voltou a rabear, a santa que sumia da igreja e era encontrada na lapinha, – o povoléu daqueles montes acudia ao lugar da Lapa e prostrando-se no lajedo frio implorava por maravilhas. Foi então construído um oratório para morada da senhora e erguidas algumas barracas para apoio aos peregrinos que daí fizeram local de culto e de penitência. A pouco e pouco eram erigidas algumas casas e o sítio ermo, agreste, pasto de gado miúdo, foi crescendo em edificações, gentes e devoção.

Ainda durante o século XVI e pelas mãos dos padres jesuítas, o oratório transformou-se em igreja, que integrando dignamente a grutinha que a santa nunca quis abandonar, passou, com mais largueza, a acolher a multidão de penitentes que se vinham prostrar perante a Senhora, em rezas e novenas apaziguadoras dos males do corpo e dos tormentos da alma.

Um século decorrido, em finais do século XVII, iniciava-se, adjacente ao santuário, a construção do Colégio jesuíta da Lapa, edifício nunca acabado. Foi nesta instituição escolar, talhada no duro granito, paredes meias com a gruta-santuário da Senhora resgatada pela pastorinha muda, que, em 1895, aos dez anos , ingressou o Mestre Aquilino Ribeiro. No romance Uma luz ao longe, ficciona esses tempos de adolescência quando, com os padres jesuítas, aprendia latim, embrulhando-se em grossos e pesados cobertores de papa que, nem assim, tapavam o frio das invernias prolongadas.

 

 

 

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