Uma Europa mimada

Não nasceu com Trump a visão “mineira” das relações internacionais. Em boa verdade, a intervenção no Iraque não foi mais do que isso, e, mesmo a terminar o mandato, foi isso que fez Biden com os acordos económicos com Angola. Trump é um desbocado e um deslumbrado, como outros que têm existido. Parece que já nos esquecemos do Boris inglês ou Berlusconi italiano…

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  • 13:24 | Quinta-feira, 06 de Março de 2025
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Ao longo de oito décadas, a Europa Ocidental viveu à sombra dos Estados Unidos da América (EUA). Tal circunstância decorria da necessidade de fazer face à reconstrução depois da Guerra Mundial e à realidade dos blocos que marcaram as relações internacionais até ao final do século passado.

A progressiva construção da globalização económica, sempre com os EUA na liderança pelo efeito muito relevante de todo o comércio internacional se fazer na sua moeda, e a assunção da China como nova potência a introduzir modificações significativas nas relações geopolíticas, introduziram fenómenos de dependência que ficaram a descoberto com a pandemia da COVID 19.

A Federação Russa, depois de décadas de forte crise económica e social, iniciou um processo de reafirmação. A construção de um regime totalitário assente nos interesses de uma reduzida oligarquia, a reafirmação do poderio militar, a intervenção em teatros de guerra, em especial em África, e o financiamento de movimentos políticos radicais na Europa e na América do Sul, levaram a que tenhamos hoje, em Moscovo, uma capacidade única de promoção das guerras convencionais e das novas guerras hibridas que só a China acompanhou.

Essa capacidade de intervenção tem sido relevante, ainda, em processos eleitorais, desde logo na primeira eleição de Donald Trump, e tem sido muito nítida em países da Europa que integraram o antigo domínio soviético.


Por outro lado, a desconsideração de largos universos de eleitores norte-americanos pelos governos de Clinton e Obama, a dependência estratégica da China e de Taiwan no que se refere a componentes eletrónicas de alto valor, fez com que tivessem sido os democratas os grandes promotores do mercado global sem reservas estratégicas e tivessem permitido o nascimento de novas classes de oligarcas americanos que são hoje detentores de grande capacidade de intervenção no setor da tecnologia e da informação. Os presidentes democratas mantiveram regras regulatórias no universo financeiro porque a crise de 2008/2009 a isso obrigava, mas deixaram todo o campo das tecnológicas, incluindo as que têm influência desmedida na indústria de defesa, sem qualquer controle relevante.

A União Europeia, numa atitude pouco ponderada e apressada, decidiu pelo alargamento a um vasto conjunto de países que incluíram o universo de influência comunista. Essa integração criou um mercado muito amplo, mas não fez nascer uma realidade política que tivesse promovido a inclusão no campo social, no campo das relações externas e no campo da política de defesa e segurança.

Foi um bom tempo. Os países do bloco ocidental foram externalizando muita da sua capacidade industrial, passaram a viver da mão de obra barata e de produtos que, no mercado internacional, ainda concediam qualidade superior e estatuto.

O primeiro momento em que se verificou a fragilidade da União Europeia foi o da última Guerra nos Balcãs a que se seguiu a divisão quanto à intervenção militar no Iraque. Porém, os europeus sempre entenderam que a sua proteção estaria garantida pela capacidade militar americana e pelos interesses que os EUA mantinham no velho continente.

Os primeiros sinais de que a UE tinha de fazer pela vida no campo bélico conhecera-se nos consulados de Obama. Os objetivos dos 2% do PIB, em investimento na área da defesa, não nasceram com Trump. Mas muitos dos Estados europeus integrantes da NATO ficaram parados à espera.

A exceção vinha do leste, de onde começava a sentir-se a nova ameaça russa.

Os EUA olhavam para a nova realidade mundial e decidiam por uma nova fase – a da garantia dos seus interesses no Índico e no Pacífico. A NATO, como a conhecíamos, estaria, a prazo, ameaçada, com Trump ou com outro qualquer presidente.

Não nasceu com Trump a visão “mineira” das relações internacionais. Em boa verdade, a intervenção no Iraque não foi mais do que isso, e, mesmo a terminar o mandato, foi isso que fez Biden com os acordos económicos com Angola. Trump é um desbocado e um deslumbrado, como outros que têm existido. Parece que já nos esquecemos do Boris inglês ou Berlusconi italiano…

A capacidade militar dos EUA continua a ser de enorme relevância, mesmo que a China se aproxime a olhos vistos; a valorização estratégica da Rússia é também nítida, até porque qualquer solução de paz para a Ucrânia seria, sempre, para si vantajosa; a China e a Índia ganham o poder de se afirmarem, até meados deste século, como economias mais relevantes do que a da UE; em África nasce uma capacidade única de intervenção multilateral e a afirmação do Egipto e da Nigéria; no indo-pacífico a Indonésia superará todos os países europeus.

Com este cenário, a União Europeia tem urgência em pensar no seu amanhã.

A presidente da Comissão Europeia apresentou, esta semana, um pacote para a defesa com um valor de 800 mil milhões de euros. Foi uma surpresa para todos, porque não se trata de nada pensado, só um número. Em boa verdade, é dinheiro para um cesto de compras em que metade será para os países europeus que fabricam armas e a outra metade será para a indústria de defesa norte-americana.

As instituições europeias têm, neste momento, um problema grave que assenta nos tratados – não foram feitos para que a intervenção militar seja um pilar de aprofundamento da união. Também têm um problema de unidade na ação – o bloco de leste sabe que precisa de se rearmar, os países que viveram as grandes guerras intuem que se torna inevitável voltar a ter capacidades que permitam fazer face às ameaças que todos conseguem antever. Mas há, em especial nos territórios das velhas democracias, uma opinião pública que tem medo de novas escaladas e que se mobilizará.

E há, ainda, a enorme capacidade de influência da Rússia na política europeia, como se viu nas eleições alemãs, de há uns dias, e se comprovou com a posição das direitas e das esquerdas ultras francesas que se juntaram no mesmo desígnio.

Este é o cenário. Portugal não pode deixar de cumprir as suas obrigações. Não é por estarmos numa ponta do continente europeu que nos podemos isentar das nossas responsabilidades perante o tempo que vivemos. Não devemos fazer crescer, unicamente, a despesa em defesa e segurança (falo das duas componentes porque devem ser vistas de forma integrada), temos a obrigação de revolucionarmos as nossas forças armadas, a sua capilaridade, a sua formação, a sua capacitação, a sua integração com a indústria, a sua valorização na sociedade. Menos gente, melhor localização, melhor capacidade. Portugal tem hoje o seu maior desafio despois das guerras ultramarinas – ser uma voz relevante no contexto da NATO e da União Europeia.

Pode fazer-se tudo isto sem colocar em causa a despesa social? Quem já governou sabe bem que sim, não vale a pena misturar os campos.

Só tenho pena que o país viva, neste tempo tão exigente, com um primeiro-ministro e um ministro da defesa tão pouco habilitados para as funções que ocupam.

Ascenso Simões

Gestor e ex-Membro do XVII Governo Constitucional

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