Os comboios

Pena é que políticos pouco avisados, num assomo de modernismo pacóvio, tenham, outrora, privado o país da ferrovia, que nos levava aos lugares mais recônditos. Reduzindo o progresso ao cimento e ao alcatrão –  com auto-estradas a mais, sem fluxo de tráfego conveniente – não descansaram enquanto não deram cabo do que valia a pena, e era muito.

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  • 15:21 | Segunda-feira, 03 de Fevereiro de 2025
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Nada aferrado a andar a pé, de mal com o automóvel, fiz-me a Lisboa e ao Porto, no último mês, viajando de autocarro e comboio. A horas decentes, sem levantares madrugadores, que me dão cabo das tensões e dos rituais, que só a muito custo dispenso. Mordomias, que me levarão para a cova, teimoso que ando nos meus hábitos.

Os habitáculos são espaçosos, confortáveis, climatizados. Os vidros filtram o sol que batendo de chapa incomoda. Há sacos do lixo para quem se descuida dos consumos alimentares, casas de banho com asseio. Os bancos têm a possibilidade de carregamento dos equipamentos tecnológicos, uma necessidade das mulheres e dos homens modernos, que cultivam uma necessidade doentia de contacto permanente, ainda que à distância. E são pontuais, muito pouco se afastando dos horários previstos.

Enquanto viajava, lembrei-me dos tempos em que, com bilhete nas carreiras do “Novo Mundo” ou do “Coche da Beira”, só seis horas depois, e sem morrerem ou se sentirem indispostos, os meus pais sabiam do meu paradeiro, se nesse intervalo eu tinha enjoado, adormecido ou emigrado.


Dei por bem empregue o tempo que gastei, poupando nas economias e investindo no descanso e na tranquilidade. Chegámos ao destino, num abrir e fechar olhos, fresquinhos que nem uma alface da horta do vizinho.

O que estraga um pouco o ambiente é o “tuga” estouvado, alérgico a companhias civilizadas, que resolve esticar as pernas e pousar as patas no banco do lado, livre de passageiros;

a mulher com os calores da menopausa, num abanico desvairado, as mãos fazendo de leque;

os ais de amores que uma adolescente soletra;

os vapores que exalam do contribuinte habituado ao banhinho mensal;

a peúga branca, com as olímpicas raquetes de ténis, a denunciar o chulé de dias;

os maus modos do casal, que resolve trazer para a praça pública posições e prazeres de uma noite de deleites;

a unhaca do mindinho que zelosa e proficientemente esgravata as narinas;

a família numerosa que arrasta a prole ranhosa e ramelosa, num choro irritante;

o ronco do noctívago, que aproveita a viagem para pôr o sono em dia;

o mal casado que, por baixo dos óculos escuros, escrutina quem por artes mágicas supõe livre e disponível para engates de ocasião.

Salvo uma idosa, que mal segura os óculos na ponta do nariz, ninguém lê; todos colados aos telemóveis, focados num mundo virtual que a todos abraça, num longo e traiçoeiro cumprimento. Dependentes e escravos, tirando os olhos do ecrã, apenas quando se anuncia a próxima estação ou o silvo estridente os desperta da indiferença.

Entre os centros urbanos já é possível a circulação, num rápido, sem atrasos e desconfortos, dispensando o automóvel, vício que já não comandamos, objecto de estimação, com direito a quartinho nos anexos.

Pena é que políticos pouco avisados, num assomo de modernismo pacóvio, tenham, outrora, privado o país da ferrovia, que nos levava aos lugares mais recônditos. Reduzindo o progresso ao cimento e ao alcatrão –  com auto-estradas a mais, sem fluxo de tráfego conveniente – não descansaram enquanto não deram cabo do que valia a pena, e era muito.

Soprados pelos ventos de uma Europa que definha, não se endireita e nem se afirma, fomos atrás do que nos impuseram, destruindo o que nos valorizava.

Seguimos pelo caminho mais fácil, deixando ao abandono um património que era suposto respeitarmos. Podíamos ter modernizado as infra-estruturas, as bitolas, as carruagens, as estações e os apeadeiros, e hoje teríamos por certo um país mais próximo e mais coeso, com o comboio, os jornais, as notícias, as encomendas a chegarem-nos quase à porta. As elites desse tempo não entenderam que com a redução do transporte ferroviário estavam a dar uma machadada forte, talvez fatal, no interior, isolando-o cada vez mais, condenando-o à agonia de uma morte lenta.

 

Depois de termos acabado com ele – um crime sem responsáveis – voltámos a colocar os carris, sonsos e serenos, como se não tivéssemos pecado.

Fazendo festança e largando foguetório, passando uma esponja sobre os erros monumentais do passado recente, os nossos dirigentes troçam de nós e da nossa memória, como se possível esquecermo-nos das falhas grosseiras.

Com o fim das camionetas da carreira, dos comboios, vieram os automóveis, as auto-estradas, que se pagam e repagam, enchendo os cofres das concessionárias, os engarrafamentos, a subida do preço dos combustíveis, a poluição.

As vilas sem serviços, as aldeias fechadas e sem gente, as matas por limpar, uma chaminé aqui e outra ali a fumegarem, os velhos a sumirem-se, as capelas a servirem de mortuárias.

Num território tão pequeno, não seria difícil termos tudo arranjadinho e a servir as nossas necessidades. Mas inventámos, e quando nos dá para as enzonices, normalmente esbardalhamo-nos.

Já é cisma este país não ter tino nem rumo. Fado e desilusão. Destino. Pode ser tudo isso, mas também é azar, defeito de fabrico, falta de peças.

Houvesse concurso público para estadistas, o mais certo seria que os concorrentes não reunissem os requisitos mínimos

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Publicado em Opinião