Olha a mala…

Acontecer este escândalo num partido que diz querer limpar Portugal da corrupção, que faz a apologia permanente do exemplo, da superioridade moral, o arauto da ética, casa de cidadãos impolutos, santuário da seriedade, é, no mínimo, surreal, o bastante para suscitar risinhos de escárnio e mal-dizer.

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  • 19:32 | Segunda-feira, 27 de Janeiro de 2025
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Até condenação, há sempre a presunção de inocência, mas há situações que, pela sua exposição límpida e cristalina tornam aquela figura jurídica uma simples formalidade, um lugar-comum que o bom senso logo arreda.

O senhor Arruda foi apanhado pelas câmeras de videovigilância a subtrair malas de vários tapetes rolantes do aeroporto Humberto Delgado, aquando das suas viagens entre Lisboa e Ponta Delgada, nos intervalos dos seus improdutivos trabalhos parlamentares.

Vivaço, apesar do seu ar abrutalhado, que as altas responsabilidades políticas não escondem, e tornam até mais evidente, pelo contraste com os vernizes e os ademanes mais em voga, escolhia os voos nocturnos, quando a vigilância era mais frouxa, facilitando a ladroagem, na zona de circulação das bagagens.

Selectivo, escolhia as malas dos voos internacionais não Schengen, as maiores, as mais vistosas, e, por certo, as que carregavam conteúdo mais valioso e tentador.

A saga terá começado em Outubro e o dito senhor terá desviado 19 malas, sendo que 13 foram, entretanto, recuperadas.


A queixa de um passageiro pôs a polícia de atalaia, encontrando na revisão das imagens gravadas a pista para melhor chegar ao autor dos desvios, que exibia movimentos corporais suspeitos, confirmando a ausência de vigilantes.

Recorrente no crime de furto, foi monitorizado pelas autoridades durante dois meses, tempo suficiente para que não restassem dúvidas sobre o seu comportamento marginal.

Homem de expedientes e de espírito empreendedor, cedo percebeu que havia que encontrar forma de colocar a mercadoria no mercado. E logo tratou de dar escala à sua segunda ocupação, criando uma empresa familiar, que escoava os produtos, rentabilizando o negócio. E porque os seus nulos afazeres parlamentares lhe davam tempo para pensar, urdiu o plano simples de criar uma conta – Miguelarruda84 – na plataforma “”Vinted”, de venda de roupa usada, de homem, senhora e criança. Modesto, e porque nada investindo, era tudo lucro, optou por valores que batiam os preços da concorrência.

O negócio florescia, e o espaço do seu gabinete era exíguo para arrecadar tantas malas encostadas à parede, e encomendas pousadas no parapeito da janela.

Miguel Arruda foi vítima do vício e da ambição. Constituído arguido, por furto qualificado de malas no aeroporto, aguarda, com baixa médica, o levantamento da imunidade parlamentar, para responder perante a justiça, já na qualidade de deputado não inscrito.

Fosse Arruda um cidadão um simples cidadão, e nem uma linha eu escreveria sobre o seu comportamento, mas, deputado, por dever de cidadania, justifica umas linhas, breves, mas genuínas de sentimento misto de profunda reprovação e indignação.

 

 

Uma repugnância incomoda-me:

1. Acontecer este escândalo num partido que diz querer limpar Portugal da corrupção, que faz a apologia permanente do exemplo, da superioridade moral, o arauto da ética, casa de cidadãos impolutos, santuário da seriedade, é, no mínimo, surreal, o bastante para suscitar risinhos de escárnio e mal-dizer. É certo que em todos os partidos há ovelhas ranhosas, más companhia e tipos malcriados, arrivistas e penetras. Mas esta nódoa, apesar de os bravos companheiros logo a terem sacudido, como se fosse sarna e lepra, ter manchado um pano que se apregoa alvo e impoluto, que faz alarde da virgindade e das lonjuras do pecado, é muito mau, capaz de destapar o oculto. Um nojo baralha-me.

2. Um deputado, constituído arguido por crimes deste tipo, e de outros ainda mais graves, não deveria, por razões de decência, poder gozar do privilégio de se sentar no Parlamento, até trânsito em julgado da sentença. A figura do deputado não inscrito devia valer apenas para divergências insanáveis com o partido de origem. Em tudo o mais, é excesso leviano. Que se mudem as leis, mas gente com este cadastro não pode representar eleitores, e muito menos a Nação. É um abuso, que a democracia permite, mas a razão repudia e o bom senso rejeita. Que os deputados, tão zelosos em criar legislação que os protege, arrepiem caminho, banindo do espaço solene os que desonram as vestes do hemiciclo. Quem se dá a este triste espectáculo de andar a esquadrinhar malas e malinhas para as subtrair aos seus proprietários, trocando os conteúdos numa casa de banho, não pode sentar-se em São Bento. É conforto a mais para indigentes que não o merecem.

Ao fim de 50 anos de regime democrático, os legisladores já deviam ter evitado os alçapões que minam a credibilidade das instituições. Talvez seja tempo de haver mão dura para quem não merece complacências e modos brandos.

A não ser assim, a democracia, mais cedo do que tarde, morrerá às mãos de quem não sabe gozar das liberdades que ela permite.

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Publicado em Opinião