Um pseudo intelectualidade, auto-crismada de esquerda e de vanguardista, gerada no fértil útero de Abril, que generosa e democraticamente tudo fecundou por igual e a esmo, o bom, o mau, o assim-assim, o rasca e o velhaco, depois de se passear com alarve arrogância pela via rápida da liberdade, tem ramificações esparsas por tudo quanto é espaço público, da miserável e sebenta taberna ao beneditino palácio de São Bento, da mais fedegosa casa de alterne ao super sofisticado casino.
E, sem embaraço nem pudicícia, a prolífica e ruidosa adua, insistindo num tique estouvado que a ensombra e diminui, qual capitis diminutio congénita, apresenta-se urbi et orbi, prenhe de majestade e unção, como herdeira universal e titular única de uma virtude – a cultura -, que exibe espaventosa e intumescida como coisa sua, em trejeitos afectados, num mercado de favores, desancando sem remorsos nem tibiezas nas consciências limpas e nas opiniões livres que tenham o arrojo de rejeitar o diktat humorístico, servido na carta das entradas, e não estejam, prestadias e úteis, acantonadas no domesticado redil, cortadas cerces quaisquer tentações de saltarem a cerca. Essa mesma esquerda nova, sem autoridade nem moral, faz da cultura uma coutada, um espaço inviolável, um condomínio privado, só seu, como se, para lá das suas fronteiras, tudo fosse murcho e desumidificado, cactos e dunas, palmeiras e camelos.
Nem sempre com dimensão, nem sempre com densidade, quase sempre sem decência. Não há sequer vestígios de pura inocência nessa prosápia imbecil, é tudo vanglória, bazófia e ostentação, sobranceria e opulência.
A farta freguesia desta fonte dos amores selectos tem coluna de opinião, espaço televisivo, programa radiofónico. E gente que num seguidismo inconsequente aplaude, aclama e incensa.
São os novos e deslumbrados condutores de homens, tutores e tutelares, donos de uma verdade que querem semeada, colhida e contagiosa. Única.
Os pastores desta réplica de igreja evangélica, parlamentando de cátedra, brandindo varas e bordões, mas abjurando o contraditório e desdenhando das objecções, enquadram o rebanho pateticamente eclético, que, com a bênção de um deus de barro e a ajuda de anjos de loiça, segue no trilho afinado, embora tortuoso. E, iluminados por um sol claro, dominam todos os saberes por igual, apontando o dedo aos tresmalhados, aos que não seguem encarreirados pelos caminhos suaves do impuro sim-sim.
Os que, circunspectos e sisudos, não seguem a sua cartilha, são olhados de viés, tratados como órfãos e indigentes intelectuais.
Numa jactância exuberante e esdrúxula, os pegureiros apresentam-se com apodos e epítetos que seleccionaram para si, que lhe caem bem no corpo inchado de prazeres, quais vestes majestosas, que de republicanas têm apenas as bainhas, os cós e as presilhas.
E os outros, os desviados são reduzidos à figura do Zé Povinho, o anti-herói popular.
A esquerda nova, repetindo jargões simpáticos, vive numa bolha, é burguesa e snob, fuma “habano”, tem cartão de crédito “Diamond”, veste “Prada”, calça “Gucci”, almoça no “Vela Latina”, joga golfe, tem amigos com praias privativas, os olhos mergulhados no azul dos oceanos. Tem vícios urbanos e hábitos superlativos, dá-se mal com o povão, o conglomerado de anónimos desinteressantes e flutuantes, migrantes que decidem o voto mais pelo peso da inflação e do dinheiro no bolso do que pela ideologia e pelas causas dos tempos. Tolera o cheiro das feiras e o roteiro da carne assada. Padece de uma síndrome de autoritarismo camuflado e tem deslumbramentos épicos. Mantém com as bases a distância que o seu convencimento recomenda, o desdém que a sua vaidade aconselha. É pedante e cambada a presunção, como risíveis e ridículas são todas as fatuidades manetas. Mas a pantomina em política, e também nas artes, apodrece temporã.