Nota prévia: ontem, fui a Coimbra, ao “Alma”. Para almoçarmos, dei preferência ao pouco saudável h3. Na fila dos pedidos, o empregado dirigiu-se à minha neta com um “e a menina?” e à minha mulher com um “a senhora?”. Eu estava a seguir, e questionou-me: “e o rapaz?”. Gelei. Ainda olhei para o lado, não fosse estar por ali um garoto, que eu não tivesse visto. Não estava. Fiz-me da cor do vinho tinto. Engoli sapos vivos, não sei quantos, perdi-lhes o conto. Contive-me. Se tivesse respondido à letra ao mulato brasileiro, tenho a certeza de que os habituais semeadores da desgraça me acusariam de ser racista, xenófobo e anti-imigração.
Depois desta confissão/desabafo, que os novos inquisidores, beatos e toscos como os de antanho, vistam as túnicas, acendam os archotes e condenem a heresia, com a censura, a denúncia, o selo, envoltos em palavras réprobas, a versão “light” e contemporânea do Santo Ofício.
No final das contas, o que importa saber é que com quase 70 anos, nunca na minha vida um branco foi tão insolente comigo como aquele tingido importado.
Odair Moniz, de 43 anos, há uma semana, pelas cinco horas da manhã, foi baleado mortalmente por um polícia, numa missão de patrulha, na rua principal da Cova da Moura.
Em resultado, e mimetizando o que vai acontecendo um pouco pela Europa, tumultos e desacatos assombraram bairros da Área Metropolitana de Lisboa. Amotinados incendiaram automóveis, autocarros, motos, motorizadas, ecopontos, caixotes do lixo, contentores, apedrejaram viaturas da PSP e causaram vítimas. Petardos e instrumentos pirotécnicos foram lançados, um destes para dentro de uma esquadra, habitações ficaram parcialmente destruídas.
O músculo e o nervo das autoridades juntaram-se num corpo só, e saíram à rua, impondo a ordem possível, rechaçando o vandalismo, que desde há dias vem tomando conta da noite na região da capital.
Impõe-se o escrutínio da intervenção policial, se agiu, ou não, com proporcionalidade. E se a Direcção Nacional da PSP mentiu, como acusou o Bloco de Esquerda. Muitas dúvidas que aconselham que se ponha água na fervura dos julgamentos apressados. Sem esforço, admito que a família de Odair viva uma revolta imensa e que ela e os amigos reajam a quente, com a raiva a turvar-lhe o cristalino. Quem, no seu lugar, faria o contrário? Nenhum castigo reporá o que perdeu. Nenhuma sanção lhe trará quem partiu.
Sem esforço, admito que a PSP, enquanto instituição, ao serviço de um regime democrático, esteja pesarosa com o que aconteceu, temente do que possa prejudicar a sua imagem e penalizar o seu sentido de missão, esforçando-se por controlar os danos inevitáveis. Mas só a muito custo, posso aceitar que certas organizações cívicas, partidos políticos e associações de moradores, empuxados por motivos arcanos, arrasem as polícias, como se pudéssemos passar sem elas, como se elas fossem um bando de malfeitores, a raiz e a causa de todos os males e feridas sociais. Que acusem ou inocentem pessoas, apenas fundamentadas na cor da pele, como ser-se branco seja estigma, e ser-se negro seja vantagem.
Lamentar a morte de Odair, é elementar, propor uma medalha para o polícia é de loucos. Aguardar pelo urgente apuramento da verdade, é de bom senso, fazer de Moniz um mártir é uma parvoíce. Reduzir o agente à condição de assassino só encontra paralelo esdrúxulo na ideia douda de elevar Odair à condição de herói.
Uns e outros, cowboys a navegarem impunemente no superlativo e no absurdo. Por onde é que anda a temperança e o sangue frio, em gente responsável e que se quer dar ao respeito, nestes tempo de vingança e de ajuste de contas? Como é que se pode confiar a gestão do país a gente que, nas escaramuças, toma sempre o partido dos brancos ou se põe sempre ao lado dos negros? Como é que se pode acreditar naqueles que, nos conflitos, dão sempre razão às forças de segurança ou absolvem sempre os cidadãos?
Uma sociedade que se cala, quando incivilizados apedrejam e atacam as forças de segurança, é um simulacro de comunidade. Mas uma sociedade que se cala, quando a autoridade se excede nos métodos – e eu já testemunhei, e sofri, desmandos escabrosos – é um arremedo de grande grupo.
Nunca entendi o critério que divide o mundo em bons e maus, e reduz a lustrosa miríade de cores ao preto e ao branco. Nunca entendi a estupidez e a carneirice.
Sempre vocal, instrumentaliza e manipula. Sempre vassourando. Ventura não quer limpar, quer agitar. Ventura não quer moralizar, quer incendiar. Ventura não quer modernizar, quer ir às velharias e ressuscitar o falecido. Mas não está só. Dos seus émulos, chegam sinais preocupantes. Vesgos e com os depósitos cheios de gasolina. Preciso de fazer o pino para admitir que é inocente e civilizado um partido político marcar uma manifestação, que se revelou pífia, de desagravo do polícia, para lugares que se haveriam de cruzar com uma outra, marcada antes, e de homenagem a Moniz. Só a vontade do confronto físico, que é precisamente o que, com responsabilidade, menos se deseja, nestes dias conturbados.
O governo que ponha mão nos distúrbios, nos desmandos selvagens, que imponha a ordem, que seja severo. Que acabe com este circo onde, à custa de uma morte, alguns políticos de contrafacção e artistas de fancaria, promovem arraiais e quermesses, trocando a honra pelo prazer mórbido de ver sangue. E que, sem exorbitar do seu espaço de manutenção da ordem pública, termine com este folclore de cemitério.