Entre marido e mulher (podes e deves) meter a colher

A Maria, mulher do Manel, com o seu filho mais pequeno ao colo embrulhado no xaile preto de uma forma tão peculiar e singela como só as mulheres alvitanas o sabem fazer, ousou dirigir-se à taberna para informar o homem (marido era para as ricas, as pobres tinham o seu homem) que a ceia já estava pronta e que ele já tinha bebido que chegasse por hoje. Que ousadia! Como é que ela se atreveu a afrontar o marido diante dos seus companheiros de vícios

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  • 8:28 | Segunda-feira, 30 de Setembro de 2024
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Não teria mais de dez anitos, quando presenciei a cena de violência doméstica que me atormenta até hoje. Recordo com uma precisão fotográfica tudo o que se passou naquele quente fim de tarde, no local que ainda hoje é a sala de visitas da minha aldeia, o largo da Tulha.

O largo da Tulha da minha infância e adolescência estava rodeado de tabernas onde os homens passavam o tempo a jogar às cartas, ao chincalhão, ao pino e outros jogos que naquela época eram apenas jogos de homens, jogos sempre bem regados por copos de vinho, poucos eram os que bebiam cerveja.

Cada “catriada”, no jogo das cartas, correspondia a quatro jogos, vinha mais uma rodada de vinho que era paga pelo, ou pelos perdedores. Escusado será dizer que ao fim de algum tempo, estes homens completamente bêbados perdiam o tino para o jogo e para a vida. E foi neste contexto que tudo se passou.


A Maria, mulher do Manel, com o seu filho mais pequeno ao colo embrulhado no xaile preto de uma forma tão peculiar e singela como só as mulheres alvitanas o sabem fazer, ousou dirigir-se à taberna para informar o homem (marido era para as ricas, as pobres tinham o seu homem) que a ceia já estava pronta e que ele já tinha bebido que chegasse por hoje. Que ousadia! Como é que ela se atreveu a afrontar o marido diante dos seus companheiros de vícios!

Lembro-me de um homem completamente enfurecido, violento, enraivecido que mal se segurava de pé e que se atirou aquela mulher que tinha nos braços o seu filho mais pequeno de uma forma tão brutal que ao primeiro empurrão a mulher estatelou-se no chão. Não sei como, mas a criança desapareceu dos braços da mãe. O que se passou a seguir foram cenas dignas de um filme de terror em que crianças e adultos assistiam sem nada fazerem.

Pontapés em todas as partes do corpo, puxões de cabelo, bofetadas, tudo isto apimentado com muitos insultos e palavrões. Uma das coisas que mais me impressionou foram os comentários paralelos, as mulheres achavam que ela, a Maria, não tinha nada que ir chamar o marido à taberna e muito menos dar palpite sobre o que ele tinha bebido. Os homens argumentavam que homem que é homem não leva desaforo para casa e que só se perdiam as que caíam no chão. As crianças como eu espreitávamos entre os adultos e interrogávamo-nos, como alguém pode ser tão violento com alguém com quem se casou. Não entendia que o amor poderia ser conjugado com violência!

Hoje, adulta contínuo a não entender. Como dizia o meu avô por mil anos que dure nunca esquecerei a dor e a humilhação a que aquela mulher foi sujeita em praça pública, sem que uma única pessoa, homem ou mulher tivesse mexido uma palha, para pôr termo a um ato tão execrável e condenável.

Naquele dia jurei que nunca permitiria a ninguém que me tratasse de forma tão desumana e cruel e que tudo faria para condenar todos os atos de violência fosse ela de que tipo fosse.

Sabemos que o álcool e outras dependências potencializam a violência ou o grau de violência da agressão, mas não explicam, nem podem desculpabilizar a violência. Culpar o álcool serve apenas para desculpabilizar o comportamento violento do agressor.

Este não é um problema de fácil resolução, tenho consciência disso, é preciso fazer muito, mudar mentalidades e comportamentos para que os números de violência doméstica registados até hoje, diminuam. É necessário proteger e apoiar as vítimas, é necessário defender e divulgar os seus direitos jurídicos e penalizar as condutas que os violam.

Tal como dizia João Paulo II, a violência destrói o que ela pretende defender: a dignidade da vida, a liberdade do ser humano.

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Publicado em Opinião