O Amável era um ser humano muito especial! Foi especial ao nascer de uma mãe paralítica e de um pai com um problema de alcoolismo. Era especial na estatura, muito abaixo do normal para um homem de estatura mediana, mas acima do normal para um anão. Estava ali entre a normalidade e a diferença. Era especial porque não era um doente mental, mas as suas capacidades intelectuais apresentavam muitas limitações. Era especial porque era extremamente educado e cordial. Era especial porque devido à sua doença jamais se acreditou que ele viveria até muito próximo dos setenta anos.
O Amável era diferente e contrariando todas as expectativas aprendeu a ler e a escrever. Era diferente porque gostava de ler, numa altura em que ler era considerado pela maioria da sociedade rural uma perda de tempo e era coisa que era feita por quem não tinha mais nada para fazer. Ler era para os ociosos e malandros. Eu e o Amável não éramos ociosos nem malandros, durante as férias grandes fartava-me de trabalhar, e o Amável, mesmo com as suas capacidades físicas reduzidas sempre ia dando uma mãozinha a quem rogasse os seus serviços. Apenas gostávamos de ler!
E os livros?! Como é que eles nos chegavam às mãos? Infalivelmente de quinze em quinze dias por volta das cinco horas, no largo da Tulha, com a biblioteca itinerante da fundação Calouste Gulbenkian. O primeiro a aperceber-se da chegada avisava o outro com um apenas “já chegou”. E lá íamos os dois, cartão de sócio na mão e os livros para entregar.
Mas nem tudo era pacato e ameno entre nós, o Amável gostava de livros grandes com muitas páginas e por vezes fixava-se num ou noutro que para mim não tinham qualquer interesse, acabava por ceder e lá concordava um bocado a contragosto com as escolhas do meu companheiro. Foi devido a uma teimosia destas, que eu li pela primeira vez ( digo primeira porque já o voltei a ler) o “Arquipélago Gulag” de Soljenitsin.
Não tenho a certeza se o Amável lia todos aqueles livros, mas a imagem que atravessa a minha memória é a de um homem pequeno, com um chapéu preto na cabeça, que tirava sempre que alguém passava, em sinal de respeito e como forma de cumprimento, encostado a uma parede de pedra, de uma casa da sua rua, muito direito e hirto, com um livro aberto entre as duas mãos.
Nunca me negou nenhum livro, bastava eu pedi-lo, que ele mesmo que o tivesse nas mãos imediatamente o fechava e mo passava. Hoje, quando recordo esses momento, acredito que o Amável sabia que o livro talvez fosse mais útil para mim do que para ele e que o seu aparente desprendimento mostrava o quanto ele achava a leitura importante.
A última vez que o vi, depois de vários anos sem o visitar (que remorso!), foi no lar de idosos em Alvite, muito limpo e asseado numa cadeira de rodas, com um ar feliz, abeirei-me dele envergonhada, receosa e perguntei-lhe: Sabes quem eu sou? O Amável apenas respondeu: és a Maria Ondina. O meu bem-haja para ele, são estas palavras e esta flor Descansa em paz…