“Até ao Fim”

O homem que escreve sobre a morte, que fotografa a morte, que esculpe a morte, que compõe um requiem é um ficcionista. Um congeminador/espectador da morte. Por vezes, até e somente um relator/esteta.

Tópico(s) Artigo

  • 16:21 | Domingo, 11 de Fevereiro de 2024
  • Ler em 2 minutos

Morrer é interromper. Interrompemos tantos actos, vida fora. Até à final interrupção. A do não-retorno.

Vergílio Ferreira finou-se a escrever uma das suas cartas a “Sandra”, a sua já falecida mulher, Regina. Tê-lo-á ela chamado. Aqui, ficcionou-se como “Paulo“. Uma coincidência.


A rádio transmite um programa intitulado “Última Sessão”. Interessante re-coincidência.

A morte é um instante épico. Nunca assistimos à nossa morte. Somos o sujeito e o objecto dessa derradeira acção. Uma isopatia (talvez um exacerbamento do pathos?) inenarrável.

O homem que escreve sobre a morte, que fotografa a morte, que esculpe a morte, que compõe um requiem é um ficcionista. Um congeminador/espectador da morte.

Por vezes, até e somente um relator/esteta. Ou um desenfreado Caronte, como quantos hoje degolam suas vítimas ajoelhadas (num derradeiro perdão de quê ou prece a quem?) ou lhes pregam um tiro na nuca exposta, enquanto um outro carrasco filma ou fotografa.

Fantástico poder da imagem que nenhum texto iguala, nenhuma descrição retém, nenhuma narração contém.

A narrativa da morte é um paroxismo retórico. Desconexo. Insentido. O narrador não é o que morre. É o que vê morrer.

 

Nota: Regina Kasprzykowsky, professora polaca refugiada em Portugal, é Sandra. Vergílio Ferreira casou com Regina em 1946.

(Foto DR)

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Opinião