Na circunstância, o cujo acusava-me de “abuso” por ter escrito que ele “enricara”. Por tal “abuso” havia julgamento já em oito sessões, oito dias, oito viagens de Lisboa ao Porto e volta, mais o que ameaçava dos demorados repositórios de testemunhas. Bem que eu repisasse que “enricar” não era pejorativo, invocasse os sagrados manes de Camilo e Aquilino, trouxesse em meu favor dicionários e étimos, o acusador teimava. Lá me condenava eu à décima quarta absolvição.
Ora, numa das viagens de comboio para o Porto com destino a sessão de tribunal na manhã seguinte, calhou-me meter conversa com um professor coimbrão com sortes de economista. Na ignorância do meu mister, falou-me de si, das suas tarefas lisboetas que contribuíram para uma reforma fiscal então em preparação – enfim, alertou-me a malandrice. Transportei-o à carruagem-bar e fui-lhe despejando uísque atrás de uísque, até que o homem dicou os pormenores do que ainda secreto estava. E, aterrado em Coimbra de pernas trôpegas, deixou-me na continuação da viagem com vapores tamanhos que me apagaram da lembrança tudo quanto o imprevidente me confidenciara e ainda me sobraram agonias que levei para o hotel onde me alojei no Porto. Agonias tantas que me desviaram do quarto para, à maneira dos rafeiros sacudirem pulgas, eu expulsar os tropeços. Nisso consumi a noite por estúrdias na companhia de Baía Reis e Sérgio Granadeiro, tertulianos das minhas indormidas noites nortenhas de então.
Para arribar à sala do tribunal, nas proximidades da Constituição, só houve tempo para despachado duche que nem aligeirou as olheiras. Em tal estado me cheguei ao magistrado e me desculpei: que para ali me plantar, trabalhara até às três da manhã no cuidado das notícias e depois me afizera afobadamente à estrada para tomar o fardo de Egas Moniz honrando palavra. E o togado incomodou-se: ao que a sanha dos homens obrigava jornalistas! Discursou, de dedo apontado ao acusador, ao patrono, ao mundo. E absolveu-me. Nunca sequer adivinhou que eu nem tinha carta de condução, nem sabia conduzir.
Nessa manhã, louvei a tal matrona, hercúlea e vendada, de espada empunhada e balança sem nada para pesar. Chamam-lhe Justiça. Está, ao vento, ao sol e à chuva, desafiadoramente à porta dos tribunais.
NOTA DO EDITOR:
Nuno Rebocho (1945, Queluz, Sintra, Portugal – 12 de Janeiro de 2020) foi um escritor e jornalista português. Participou activamente na luta contra a Estado Novo de Salazar, chegando a ser preso durante cinco anos, por motivos políticos, na cadeia do Forte de Peniche.
Tive o grande privilégio de ser seu amigo. Publiquei textos seus por periódicos que dirigi. Estou com ele antologiado na obra “Na Liberdade” (2004). Tem mais de 15 títulos de poesia publicados.
Esta crónica, uma das muitas que dele recebi e das quais ele queria fazer livro, a seu tempo aqui publicada, merece ser relida, pela sua actualidade e qualidade. Também como singela homenagem ao Homem, ao Jornalista e ao Poeta que, na nossa memória, perdura vivo.
(Foto DR)