O enorme Ricardo Reis, criatura de Fernando Pessoa a quem José Saramago determinou o enredo da morte, teria gostado de conhecer Pedro Nuno Santos.
Claro, o facto de ter estudado num colégio de jesuítas, de se ter formado em medicina e ser monárquico, não teria permitido uma primeira boa impressão, coisa que, na política hodierna, é sempre muito valorizada. Mas o seu espírito de combatente, que o levou a participar na Monarquia do Norte e a exilar-se no Brasil, não deixaria de atentar em quem, hoje, luta pelas suas convicções, mesmo desacertando aqui ou ali.
O epicurismo de Reis encontraria em Pedro Nuno a característica de não temer o fenecimento, aqui olhando a desaparição da política, e a forte sobreposição da razão sobre a sentimento. Encontraria ainda, no novo líder do PS, doses abundantes de estoicismo, um bastante de contentamento que não se revela na exuberância da alegria ou em fortes emoções.
Mas seria o uso do imperativo, quase sempre, do gerúndio, algumas vezes, que levaria a uma especial atenção de Reis ao líder que emergiu do operariado do início do século XX para se fazer na burguesia industrial do século XXI.
O Reis heterónimo seria brando nas insuficiências de Pedro Nuno, não anteciparia o tal ano da morte na ação pública e encostar-se-ia para trás, na sua cadeira de baloiço, sorrindo sobre a aparente tranquilidade de Pedro como máscara de uma especial angústia existencial.
Mas não é sobre o Ricardo Reis de Pessoa que quero hoje escrever. Quero contrariar um outro Ricardo Reis, mais comum, mesmo que a sua aparência seja de epicurista, mais dado a escrever fazendo cortes enviesados sobre a realidade.
Na passada semana, Ricardo Reis, professor de economia que aos 29 anos era full em Columbia, escreveu, sobre o novo líder do PS, um texto a que deu o nome de “O cadastro económico de Pedro Nuno Santos”. Este texto está cheio de juízos de valor que não podem passar em claro.
Reis começa por dizer que a trave-mestra do pensamento de PNS, sobre o Estado enquanto promotor do desenvolvimento económico, é “a obrigação de fazer escolhas quanto aos setores e tecnologias a apoiar”. E desconfia da capacidade do Estado em confecionar boas opções, deixando de fazer o que no seu íntimo está bem claro – o Estado não deve fazer escolhas, deve apoiar os amigos. Nos exemplos, Reis fala da Efacec, da TAP, da CP e dos CTT.
Quanto à Efacec, diz que em 2020 era uma empresa de ponta, tecnológica, exportadora e fala dos prejuízos de 360 milhões de euros depois de nacionalizada.
Reis fala da TAP. Podia afirmar-se, unicamente, pela não necessidade do Estado Português ter capital numa companhia aérea, era ideologicamente entendível, mas não pode negar a obrigação do Estado em ajudar a empresa, como o fizeram outros Estados, num período muito difícil como foi o da pandemia. Quanto teria custado ao país a falência da TAP? Essa conta nunca é apresentada pelos detratores de Pedro Nuno, muito menos por aqueles que, aquando da venda da empresa por um Governo PSD/CDS em gestão, não tiveram o cuidado de dizer que estávamos perante um assalto à mão armada.
Eu tenho, quanto à TAP, uma divergência com o Governo de Costa, mas não posso aceitar uma consideração de que a TAP, depois de ter dado lucro em dois anos consecutivos, foi um fracasso para PNS.
Em primeiro lugar, houve que recuperar os comboios que o Governo PSD/CDS encostou e foram dezenas. Depois, houve que elaborar o Plano Ferroviário e lançar concursos. Por fim, avançaram os procedimentos para a compra das composições e, muito relevante, exigiu-se que o fabricante instalasse uma fábrica em Portugal.
Por último, Reis segue na conversa de outros escrivas de pacotilha que nos querem fazer entrar pela goela, como geleia, a traficância que foi a privatização dos CTT.
Escreve, com pompa, que o Estado recebeu “€900 milhões por uma empresa que hoje vale cerca de metade disso.” O que não diz é que a empresa não era só o negócio postal, era património valiosíssimo que foi alienado ao desbarato pelos acionistas; que a empresa foi vendida com uma licença para a criação de uma instituição financeira que antes não comportava e que só esse facto poderá valer um terço dos mesmos €900 milhões; também não diz que o valor da empresa, hoje, não é só o resultado da redução do mercado postal tradicional, mas é, e muito consideravelmente, o resultado de uma gestão que desnatou, a cada ano, o grupo.
Há trinta anos, os CTT lançaram o correio azul que foi uma referência para centenas de empresas de todos os continentes e foram vanguarda no negócio de finishing; há duas décadas, a empresa iniciou a sua progressiva transformação para assentar o seu principal negócio no mercado digital, alargando a sua atividade a Espanha com a compra a Tourline. A primeira machadada dada nestas opções estratégicas foi com a gestão de Carlos Horta e Costa, secretário-geral do PSD nos anos de 1997 e 1998 e presidente dos CTT entre 2002 e 2005. Importa lembrar a venda do edifício dos Correios em Coimbra e os negócios ruinosos com o BPN; a segunda machadada foi dada com a gestão de Francisco Lacerda, tempo em que tudo foi desbaratado com o único objetivo de se promover uma privatização que impedisse qualquer capacidade negocial posterior ao Estado.
Ricardo Reis, o heterónimo, olharia para o seu homónimo full com pouca consideração. Afinal, o conservador e monárquico do Norte nunca teve, na sua vida de ficção, qualquer apreço por quem não tinha respeito pela verdade.