A Quinta Estação do Ano

O dia de São Martinho, celebrado em quase todas as regiões do País, coincide com a opulência dos castanheiros e a variedade das castanhas. É um espetáculo que nos transmite a energia cósmica da terra. Costumo chamar a quinta estação do ano.

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  • 16:23 | Terça-feira, 28 de Novembro de 2023
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O outono surgiu, pontualmente, no dia do equinócio, a 23 de setembro e vai prolongar- se até 22 de dezembro, o dia do solstício de inverno. Anoitece mais cedo. A atmosfera permanece carregada de melancolia e de angústia. Tempo de frio intenso, de chuva forte e de neve. Mais perto ou mais longe os lobos têm as goelas ávidas de sangue. Mas, por alguns dias, assistimos ao regresso das manhãs luminosas e das tardes claras e repousantes .

O dia de São Martinho, celebrado em quase todas as regiões do País, coincide com a opulência dos castanheiros e a variedade das castanhas. É um espetáculo que nos transmite a energia cósmica da terra. Costumo chamar a quinta estação do ano. Os contrastes do outono, na Beira Alta, acentuam-se nos itinerários da serra, na profundidade dos vales, no curso dos rios, em tudo o que define a região e as suas populações. Aquilino retratou esta paisagem geográfica e humana, logo no início da sua carreira literária, na Via Sinuosa, nas Terras do Demo e na Estrada de Santiago. Manteve, na reta final, essa pujança inicial na crónica romanceada da Casa Grande de Romarigães e no protesto vigoroso contra a situação política nas páginas escaldantes de Quando os Lobos Uivam.

A Beira Alta foi para Aquilino um manancial. A retrospetiva da infância e da adolescência ficou em Cinco Réis de Gente e Uma Luz ao Longe. É a memória dos olhos que olham e que sonham, dos ouvidos que escutam as vozes e os rumores, de todos os sentidos despertos para o que o rodeava. Na série de «ensaios ocasionais» (dixit António Sérgio) – para mim é o «Quinteto da Beira» – reuniu artigos dispersos em jornais e revistas em livros que nos surpreendem ainda. Tais como Aldeia, Avós dos Nossos Avós, Geografia Sentimental, O Homem da Nave, Arcas Encoiradas: a natureza na sua diversidade, o património edificado, o perfil granítico das ruas e do casario, o dia a dia mergulhado na continuidade da rotina.

 


 

Alberto Correia, mestre em estudos aquilinianos, procedeu ao reencontro do «Aquilino total», destacando o prazer da mesa e a excelência da gastronomia da região: «Comeram-lhe à tripa forra» – escreveu Aquilino – «carniça refogada, cozida, assada, de porco, de vaca, de chibato, carniça para todos os paladares. O arroz estava de se trocar por um prato dele a imortalidade, o cabrito, rechinado no espeto e picadinho do sal, até fazia cócegas no céu-da boca».

Trancreveu a entrevista de Aquilino concedida a Igrejas Caeiro para a rádio onde se orgulha da terra onde nasceu: «Sernancelhe, terra de pergaminhos», situada no meio dos castanheiros, «árvore bonita, árvore cheia de força e de beleza» (…) «Um castanheiro é uma cidade. É uma cidade para os pássaros. (…) Referiu, ainda, «as pastoras, com os seus tamanquinhos, britar o ouriço, com os britadores especiais, com a sua capuchinha para apanhar as castanhas, todas as manhãs, quando vem um bafo de vento.»

Nos Cinco Réis de Gente, com a minúcia dos mestres da pintura flamenga, Aquilino já descrevera a configuração das castanhas «tão bonitas com sua oval fantasiosa, seu sépia de veludo, tão ternas quando espreitam juntinhas às duas, às três e até às quatro, inclusa a boneca, do ouriço arreganhado, tão bonitas até mesmo no chão, uma das faces plana, outra convexa à semelhança da broa no açafate».

Também Paulo Pinto investigou o São Martinho na Beira Alta. A tradição de «abrir os pipos» – conforme salientou – «já não está presente na cultura sernancelhense como na década de 80 e 90 do século XX». Sobreviveu, contudo, o ritual dos magustos. A jeropiga ganhou especial relevância. Composta por duas partes de mosto de uva – observou Paulo Pinto – «uma parte de aguardente e outra de açúcar, a mistura resulta numa bebida com o equilíbrio perfeito entre a doçura e um aroma persistente a frutos secos. Nada melhor para acompanhar as deliciosas castanhas assadas ou cozidas».

O modo de ser e de estar do beirão – na opinião de Aquilino – consiste na «brutalidade e melancolia, rijeza e desespero, perspetivas abstratas e um sentido da vida muito concreto». Todavia a «cediça estagnação» interrompe-se com a balbúrdia das feiras, a algazarra das romarias, as brigas com o varapau e a navalha. Regala- -se com volúpia das comidas e bebidas, a vitela, o cabrito, as trutas e com o vinho da região. A existência decorre – advertiu Aquilino – «rindo, lutando, matando, mesmo se apertados pela necessidade ou pela raiva». Em suma: «capazes de grandes rasgos de bravura e de inesperada bondade.»

Ontem, como hoje, esta Quinta Estação do Ano, apesar das mudanças radicais, perdura nas reminiscências que Aquilino evocou na sua linguagem feita de heranças vernáculas, de epicurismo e rebeldia. As narrativas e as derivas da imaginação refletem o inconformismo militante para exaltar a terra, caracterizar os homens, enaltecer os bichos e louvar os pássaros. É um testemunho de Aquilino para se opor a todas as formas de sujeição e de intervir na defesa dos valores fundamentais da liberdade.

 

 

Nota: Retrato de Aquilino por Álvaro Carrilho.

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