Brasil – do descobrimento ao desconhecimento

O atual Presidente reivindica uma consagração antiga, uma formulação que a História encontrará em movimentos nacionalistas das primeiras décadas do século XX. Deus, Pátria e Família ancoram uma rancorosa visão da parte de uma sociedade que se acha profundamente engajada (um erro) na leitura europeia.

Tópico(s) Artigo

  • 10:20 | Sexta-feira, 02 de Setembro de 2022
  • Ler em 4 minutos

Diga-se o que se disser, as Histórias da Europa, de Portugal e do Brasil consagram o “descobrimento” das terras e das gentes deste pedaço de mundo, que veio a fazer parte do novo continente Americano, como tendo sido aventura dos portugueses.

João Paulo Oliveira e Costa diz bem do que se pode considerar “descobrimento” no tempo histórico hodierno. Trata-se de um encontro entre civilizações que se conheceram e se foram descobrindo em conjunto. Também de trata de uma progressiva influência, mesmo que tenha sido descompensada, entre territórios e sujeitos que neles passaram a habitar.

Contente Domingos, ao olhar para o que passou a ser Brasil, desgradua a chegada de Pedro Álvares Cabral para se quedar na aproximação anterior de Duarte Pacheco Pereira. As idas de Pacheco ou Cabral, ambas documentadas por palavras indecifráveis ou por cartas diplomáticas, não terão sido as primeiras, outros terão aportado antes e, por ausência de inscrição nas crónicas ou nos mapas, foram por Tordesilhas desgraduados.


Os portugueses enquanto massa pensam que conhecem o Brasil. Acham que terão construído um artefacto burocrático num território que é um continente, consideram que os exércitos se fundaram nas nossa anacrónica estrutura castrense, que as elites se teriam formado em Coimbra e essa passagem teria sido determinante. Nada de mais enganador. Partes significativas dessas elites brasileiras, que se criaram na segunda metade do século XVIII e durante todo o século XIX, mesmo que tenham passado por Coimbra, foram procurar outros mundos insuflados pela Revolução Francesa e pelo Iluminismo. José Bonifácio é o exemplo mais relevante.

O Brasil do novo Império, a partir da segunda década do século XIX, construiu-se de tantas origens e tantas culturas que o transformaram no que é hoje, um povo eclético que continua a ser profundamente segregador.  Quando Jô Soares perguntou a Saramago se considerava que os portugueses eram os responsáveis pela situação atual do Brasil, ele respondeu: “Vocês estão cheios de alemães, italianos, libaneses, japoneses e querem que sejam os portugueses os responsáveis por tudo o que vos aconteceu?”

O maior país de língua portuguesa está em processo eleitoral. Os dois contendores principais são a representação de uma sociedade profundamente dividida, uma eliminação dos valores éticos que este nosso século deveria ter imposto também na América do Sul.

O atual Presidente reivindica uma consagração antiga, uma formulação que a História encontrará em movimentos nacionalistas das primeiras décadas do século XX. Deus, Pátria e Família ancoram uma rancorosa visão da parte de uma sociedade que se acha profundamente engajada (um erro) na leitura europeia.

Mas não é só! A visão economicista que Bolsonaro impõe ao ambiente, ao abastecimento alimentar ou à oferta de bens energéticos afasta a sua gestão de todas as leituras cientifica e tecnicamente sustentadas.

O que é muito interessante de verificar é a distância entre as competências política e técnica de Bolsonaro e a de alguns dos seus ministros. Talvez sejam mesmo esses quem lhe dá, ainda, os 35% em sondagens de todos os grandes centros de pesquisa.

Lula foi um presidente com estatura e que esteve à altura do seu tempo. Só que os escândalos de corrupção provados no universo dos seus colaborares e do seu partido, a atávica visão do mundo globalizado e a incompreensão quanto ao equilíbrio geopolítico do momento, inevitabilidades que a idade lhe inculcou, fazem com que Lula 2 não seja já o Lula 1 que até à sua prisão teria deixado algumas saudades.

Que governos poderia fazer Lula? A escolha de Alckmin, sempre ortodoxo conservador, para Vice, diz muito sobre o passado e revela a ausência de ambição. Mas não é só isso, na sua campanha, encarcerada para não se sujeitar ao enxovalho, há uma multidão de amigos de Alex, a década de 1960 que acha que o mundo de hoje lhe deve tributo.

Não há uma só ideia sustentada para o reforço das políticas públicas que possa garantir o crescimento, não há uma visão segura sobre empresas e pessoas que esteja à altura do país. Há só assistencialismo requentado.

Em Portugal caminhamos, numa ampla maioria comandada pela comunicação social, na oposição a Bolsonaro. Olhamos o país que mais golpes teve nas suas Repúblicas, com os olhos do nosso pequeno retângulo. Sabemos pouco da História da América Latina, da construção caudilhista, do papel dos militares.

Também caminhamos, numa maioria menos numerosa mas mais ruidosa, avivando Lula, porque a nossa visão guevarista nos faz aceitar o encantador que é a eleição de um metalúrgico para presidente.

A análise que nós pessoalmente fazemos comporta-se difícil, porque se situa entre um troglodita político e um demagogo encartado.

Quando uma eleição é disputada da forma irracional como está a acontecer na Brasil, revela-se difícil o aparecimento de uma terceira via. Mas ela existe.

Ciro Gomes comparece hoje como o mais credível dos candidatos da fila da frente. Preocupações sociais, liberdade de iniciativa com regulação, metas ambientais antecipadas, visão atlantista nos equilíbrios militares. Se o catalogássemos pela visão europeia sempre poderíamos afirmar que é um verdadeiro social democrata.

É muito provável que não chegue à segunda volta. Mas interessa que possa ter os votos necessários para implicar os próximos quatro anos.

E existe uma razão puramente egoísta que nos leva a simpatizar com ele. Há muito que Portugal e os portugueses se revelam elemento de anedota e até de desconsideração no Brasil corrente. Ciro, no seu programa, mostra a sua leitura sobre uma nova relação do Brasil com a Europa através de Portugal. Nem Lula enquanto presidente, para além das simpatias pessoais e alguns negócios duvidosos, nem Bolsonaro tiveram Portugal como central nas suas políticas externas.

Se votássemos, votávamos Ciro, o único com uma ideia moderna para o Brasil. O único que tem condições de implicar, com moderação, o futuro que chega.

 

(Foto DR)

 

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Opinião