Natureza Morta (na morte de José-Augusto França)

Natureza Morta (permito-me informar ou lembrar) conta de uma lisboeta que casa por procuração com um gerente de fazenda africana e vai viver o pior, num destino cruzado com o dum negro batido e suicidado por castigo de se ter queixado de fuba podre dada em alimentação. A fazenda, conheci-a bem (fiz mesmo o seu levantamento cadastral), a sua gente também, a protagonista imaginei-a; de um caso de fuba podre soube.

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  • 21:48 | Segunda-feira, 20 de Setembro de 2021
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José-Augusto França Tomar -16 de Novembro de 1922 / Jarzé (França) – 18 de Setembro de 2021

 

No passado sábado tomei conhecimento da morte, em Jarzé, França, de José Augusto França. O mais reputado dos Historiadores de Arte portugueses fechou os olhos nas vésperas de completar 99 anos. Porém, o que me traz aqui, a estas linhas, prende-se com a sua vertente de romancista, mais propriamente com a sua primeira obra intitulada Natureza Morta.


Nascido em Tomar, cedo rumou a Lisboa, onde, na Faculdade de Letras, se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas, corria o ano de 1944. A morte do pai levou-o, no último ano da 2ª Guerra Mundial, a partir para Angola, para trabalhar como adjunto do director de uma companhia colonial. Numa entrevista que concedeu ao jornal Sol, a 31 de Maio de 2016, avaliava negativamente a sua permanência em território angolano:

Não me dei bem no meio daquele colonialismo torpe e trouxe de lá um romance, Natureza Morta, que foi retirado do mercado e valeu-me ter sido arredado da empresa (…). Andei pelo interior e vi como se comprava a mão-de-obra. Os negros eram pagos e, conforme o ‘contrato’ obrigatório dos indígenas, deixavam o dinheiro todo para comprarem óculos escuros e outras coisas na loja da fazenda. Era uma forma de escravatura e uma vigarice. Depois vivi na fazenda açucareira do Bom Jesus e presenciei a miséria de toda aquela gente, que andava de serapilheira enrolada aos rins, a trabalhar de sol a sol, a fazer as plantações.

No texto. “ A propósito das colónias”, incluído na obra Pensamentos e escritos (Pós Coloniais), JA França relembra a trama do seu primeiro romance, escrito entre Setembro e Novembro de 1947, quando o autor andava pelo quarto de século.

Natureza Morta (permito-me informar ou lembrar) conta de uma lisboeta que casa por procuração com um gerente de fazenda africana e vai viver o pior, num destino cruzado com o dum negro batido e suicidado por castigo de se ter queixado de fuba podre dada em alimentação. A fazenda, conheci-a bem (fiz mesmo o seu levantamento cadastral), a sua gente também, a protagonista imaginei-a; de um caso de fuba podre soube.

Em Natureza Morta foi desmistificado o “colonialismo suave, humanista, cristão e civilizador” tão ao gosto da propaganda do Estado Novo e do luso tropicalismo tardio, que tantos cultores tem ainda no Portugal do século XXI. Ao fazer o retrato cru das relações entre colonos e colonizados, funcionários coloniais e trabalhadores contratados, o autor traz à superfície o abismo entre a legislação – Códigos do Indígena – e a prática quotidiana, muito bem retratada na narrativa particular de Macuso, o trabalhador que se enforca no armazém da Companhia que o contratara.

Publicado pela primeira vez em 1949, a primeira obra de JA França encontra-se esgotada no mercado. Quis o destino que a encontrasse à venda na OLX. Por um preço irrisório consegui um “documento” que, cruzado com documentação oficial – relatórios, legislação, correspondência variada, – permite reflectir sobre as práticas coloniais e perceber como era abissal o abismo entre o discurso do poder centralizado em Lisboa e a concretização das políticas gizadas em S. Bento no interior das Colónias.

 

 

Quando pensei enviar uma comunicação ao Congresso Internacional “Da escravidão ao trabalho digno. Nos 150 anos da abolição da escravidão em Portugal e nos 100 anos da criação da OIT”, realizado em Lisboa, nos dias 21 e 22 de Novembro de 2019, Natureza Morta apresentava-se-me como o melhor guião para a análise da implementação do modelo colonial, que alicerçado no trabalho por contrato, tinha como suporte jurídico os “Códigos do Indígena”. E a comunicação, intitulada “Dos regulamentos do trabalho indígena à sua ineficácia prática. “Natureza Morta”- o caso angolano, aconteceu e deu origem a um artigo publicado no último número da revista Análise Social. E assim, a literatura ilumina, nem que seja com um murro no estômago, o caminho trilhado pela investigação.

Regressado de África, JA França foi companheiro dos surrealistas de Lisboa e editor. Em 1959, rumou a França, obtendo uma bolsa do Estado francês. Discípulo de Pierre Francastel, estudou na Sorbonne, onde se doutorou em História com a com a tese “Une Ville des Lumères: la Lisbonne de Pombal”(1962) e em Letras, com a tese “Le Romantisme au Portugal” (1969). Foi autor de obra vastíssima, cerca de cem livros, de que se destacam Lisboa Pombalina e o Iluminismo, A Arte em Portugal no Século XIX, A Arte em Portugal no Século XX, História da Arte Ocidental, 1750-2000 e Lisboa, História Física e Moral. São também obras de referência as monografias que escreveu sobre Almada Negreiros e Amadeo de Souza-Cardoso.

Com o 25 de Abril de 1974 regressa a Portugal e a ele se deve a criação do curso de História de Arte na faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Nos anos oitenta do século passado foi director do Centro Cultural português da Fundação Calouste Gulbenkian.

Provavelmente a primeira obra de JA França, uma incursão no romance, crua, destemida, descarnando até ao tutano a realidade colonial portuguesa, será pouco lembrada, reservada, quiçá, a uma minúscula nota de roda-pé. Ao invés, produzida quando o movimento descolonizador era ainda uma miragem e fruto de experiências traumatizantes, apresenta-se como um dos primeiros documentos anti-colonialistas, que obrigavam a uma reflexão profunda, não se desse o caso de ter vindo a lume em 1947, quando a exaltação do Império estava no seu auge e a Ditadura era bem musculada, malgrado as queixas que chegavam ao Ministério das Colónias. Não por acaso, em finais de 1944, Marcelo Caetano instaurou um inquérito aos “organismos de coordenação económica imperial” designando como inquiridor o então Inspector Superior da Administração Colonial, Henrique Galvão. Ora, o relatório final apresentado na Assembleia Nacional a 22 de Janeiro de 1947 era muito crítico, para não dizer corrosivo, quanto ao modelo colonial português.

Talvez nos dias que correm, em que o racismo sistémico leva à intolerância e á confrontação a que se alia uma notória falta de conhecimento da história recente do colonialismo, notadamente do português, era necessário tornar a reler e a meditar sobre obras como a Natureza Morta de José-Augusto França. Talvez assim se evitassem muitas barbaridades.

 

 

 

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