O Concelho de Canas de Senhorim foi durante quase todo o século XX um motor económico importantíssimo da Região Centro, contribuindo decisivamente para a economia do país, essencialmente através de duas grandes empresas – ENU e CPFE. Também outras, em Canas e na sua órbita, de menor dimensão, desenvolviam a sua atividade e beneficiavam o dinamismo económico existente. Esse dinamismo tinha associado um outro, de índole cultural e social, que influenciando toda a região, que constituía polo de atração importante de pessoas e do parco mediatismo comunicacional que então existia. Esse segundo vector desvaneceu muito mais lentamente que o primeiro, abruptamente caído em desgraça nos anos 90, sem que a Câmara Municipal ou o Governo da altura mostrassem mais do que um certo regozijo invejoso. Schadenfreude de Estado, digamos.
Essa intensa atividade industrial foi feita com graves custos ambientais, sociais e de saúde das populações, custos esses que nunca foram efetivamente reparados.
É verdade que houve a tentativa séria de tentar minimizar os impactes das minas de urânio da Urgeiriça mas, mesmo nesse caso, o haver continua todo e de forma expressiva, do lado das populações que durante anos esventraram a terra para proveito do país. Do lado dos Fornos Eléctricos o que tivemos foi um assalto, ao estilo do BES, que só veio agravar o problema em proveito de dois ou três bandidos, que ainda conseguiram passar a responsabilidade do passivo ambiental e social para a pública Caixa Geral de Depósitos (pois claro).
Muito há a fazer, quase tudo está por fazer por aqui, e é-nos apresentado no agora nauseante métier mediático a boa nova de que vem aí a “bazuca” dos milhões de Bruxelas, alcunha para o plano para a recuperação e resiliência (que os planos também precisam de palavras charmosas e bombásticas).
Localmente já se sente alguma agitação com os milhões anunciados e, espante-se, até uma ciclovia circular urbana, junto a uma estrada nacional, foi anunciada (naturalmente na sede da União dos Concelhos de Canas de Senhorim e Nelas, que é onde faltam espaços para pedalar) e, excitam-se os neutrinos políticos com a possibilidade de negócio imobiliário (mais um depois de quintas, empresas falidas, terrenos a 0,5€/m2) ao abrigo de uma pretensa estratégia nacional para a habitação. Só “boas” intenções, como não podia deixar de ser.
Já para o Concelho de Canas de Senhorim, com as suas povoações, quase nada, pois claro, que o normal é mesmo assim, que a Câmara é de Nelas e bastam umas migalhas, que o “Governo trata é com as câmaras” e esta o que quer é isto. É o centralismo concêntrico, ao jeito de uma cebola, completamente contrário à hipócrita coesão com que choramos a Bruxelas.
Falta recompensar quase 100 anos de esforço e sacríficos. Falta reabilitar o que foi destruído. Falta aplicar o princípio do utilizador/poluidor pagador e oportunidades não faltam. Estranhamente (ou não) dos actores não sai palavra, entretidos que estão a lobrigar-se ao espelho onde diariamente se embevecem com a importância narcísica adquirida, cobertos com o manto real que já se funde com a pecaminosa carne mortal.
Ouve-se por esse país fora em criar espaços de coworking no interior, ao que parece com potencial para atrair populações, mas, no espaço da Urgeiriça, com edifícios vazios a precisar de destino, não pode ser. Ao invés assiste-se ao progressivo abandono do espaço, com equipamentos instalados pela EDM podres ou a apodrecer, sem uma jardinagem efectiva, sem investimentos que o transformem e potenciem, que o liguem aos Valinhos, à Mata das Alminhas (talvez com a tal ciclovia/ecopista), criando uma zona de referência a ser utilizada por todos e criando um espaço de atração de excelência. Espaço que, com tantos trilhos, passadiços e afins, bem podia ser naturalmente “ligado” à também abandonada Caldas da Felgueira (em Canas de Senhorim, pois então), via Ribeira da Pantanha, onde é preciso potenciar o recurso termal importantíssimo e desprezado por todos os responsáveis a não ser para propaganda e atacado com a poluição tolerada e engendrada que por ali é a única que passeia.
Ouve-se em gastar o nosso dinheiro para reabilitar o “mercado municipal”, onde pouco ou nada se vende, mas esquece-se o ainda funcional mercado municipal de Canas de Senhorim, obra do arquitecto “da casa” Keil do Amaral e a precisar, tal como a zona envolvente até ao Rossio de Baixo, de investimento e “regeneração urbana”.
Escuta-se que se vão comprar edifícios devolutos para construir habitação a preços controlados (em Nelas pois claro), mas os edifícios da antiga CUF/Quimigal (e já agora a balela das ARUs) continuam abandonados e expostos ao inexorável ciclo de Davids.
Ouve-se falar em comboio em Viseu, numa Linha da Beira Alta recuperada, mas a Estação de Canas de Senhorim, está fechada com blocos de cimento e ninguém exige que seja reconstruída e/ou deslocalizada (para a Urgeiriça por exemplo).
Escuta-se falar no apoio às “industrias criativas” mas, por cá continua a faltar uma verdadeira aposta nas manifestações culturais, seculares ou não, profissionais ou não, por mera (perdoem-me o brejeirismo) dor de corno. Projectos para potenciar e sedimentar a educação no Concelho, não se conhecem.
O abandono é de tal ordem que basta olhar, em jeito de súmula, para o nó do IC12 de Canas de Senhorim e ver que é provavelmente o único do país que nem iluminação tem (nem falemos da sua miserável e perigosa configuração).
Mas alegria, que vem aí a “bazuca” que disparará milhões e milhões de euros nos mesmos sítios de sempre enquanto nós nos entretemos com as razões de o “Benfica ter gasto 100 milhões e só estar no terceiro lugar” e celebramos (até na Urgeiriça) a vitória do Sporting.
Alguns dirão, “é a política, estúpido” (e é obviamente), mas por cá, se quisermos pensar, sabemos muito muito bem onde elas nos levaram. Por cá o “populismo”, a transumância política e o vazio ideológico já grassam há décadas.
(Fotos DR)