A lenda da cabicanca (Aguiar da Beira)
O temor à cabicanca – sim, porque o povo não sabendo que aquela desengonçada ave era uma cegonha, nunca outra tinha feito ninho por aqueles lados, quando a via exclamava: “Olha ca bicanca!” e cabicanca ficou, – dominava de tal modo as gentes de Aguiar da Beira, que os campos cessaram de ser arados, as vendas cerraram as portas, os bailes deixaram de ser dançados no terreiro.
Conta-se que há séculos, quando de terra em terra, com os burritos pela arreata, os almocreves transportavam vitualhas e novidades, os moradores da recôndita vila de Aguiar da Beira andavam atemorizados por causa de um estranho ser, – corpo grande e desajeitado de ave, com asas que tapavam o sol quando este adormecia e um pescoço comprido rematado por um bico que nunca mais acabava -, que fizera da torre da igreja matriz, que tinha S. Pedro como orago, a sua casa.
Tão assustados andavam que nunca mais se acercaram da igreja. O sineiro deixou até de tocar para a missa e o padre, a quem o medo também não largava, abandonou o local onde pontualmente pontificava.
O temor à cabicanca – sim, porque o povo não sabendo que aquela desengonçada ave era uma cegonha, nunca outra tinha feito ninho por aqueles lados, quando a via exclamava: “Olha ca bicanca!” e cabicanca ficou, – dominava de tal modo as gentes de Aguiar da Beira, que os campos cessaram de ser arados, as vendas cerraram as portas, os bailes deixaram de ser dançados no terreiro.
E Martinho Afonso? Que lhe aconteceu? Levado em triunfo como um herói vencedor de hercúleas batalhas, passou oito dias em festa contínua, bebendo e escorropichando o vinho que deixava marca em copos muito usados. Ou ele não tivesse a alcunha de “escorropicha”.
Do Escorropicha pouco mais sabemos para além dos padres nossos que o padre por ele encomendava todos os domingo. Como almocreve que era, dali galgou a outras paragens com o burrito pela arreata e muitas estórias para contar, dentre elas a da cabicanca… e tanto contou que os habitantes de Aguiar da Beira passaram a ser conhecidos por “cabicancas”, designação que perdura, mas nomeada em segredo…
Da igreja matriz de S. Pedro, onde a cegonha nidificou, não resta qualquer vestígio. Narra a tradição que foi votada ao abandono e construída uma nova matriz, desta vez dedicada a Santo Eusébio. Mas se a vetusta igreja ficou retida num passado já longínquo, o Largo dos Monumentos, com o Pelourinho, a Fonte Ameada e a Torre do Relógio, remete-nos para um tempo em que o quotidiano da vila se centrava naquele espaço… quem sabe se Martinho Afonso escorropichou o seu copito encostado a uma das ameias da fonte!…
((Imagem DR)