Se formos questionados daqui a cinco ou dez anos, assumindo que lá chegaremos, claro, sobre o que nos roubou a pandemia, certamente que todos saberemos elencar diversos infortúnios. Desde logo, a perda de familiares, amigos ou conhecidos, mas também situações mais mundanas, como o emprego, aniversários, efemérides, hábitos, entre outros. Ao invés de construirmos memórias alicerçadas na empatia e convívio entre semelhantes ou na solenidade de um evento familiar, vivemos em distância social, com receio uns dos outros, com medo, inclusivamente, de procurar cuidados médicos para os problemas de que padecíamos antes deste vírus. De repente, vimo-nos confrontados com o peso da nossa vulnerabilidade, que reduz a linha que separa a vida da morte a um fio de cabelo.
Acima de tudo, este vírus tem vindo a delapidar-nos sentimentalmente, a privar-nos dos contactos com os laços emocionais que tecemos, aqueles que construímos durante anos e que tudo fizemos para manter. Impede-nos de ir visitar entes queridos ao hospital, às suas casas ou aos lares, quando esse momento é aquele por que essas pessoas mais anseiam durante dias e dias. Chega até a expropriar-nos de uma despedida solene e merecida a todos os que partiram durante a pandemia.
A pandemia engavetou-nos os afectos, afasta-nos sistematicamente uns dos outros, impedindo beijos, abraços, apertos de mão, ou seja, as manifestações de apreço, carinho e consideração que os nossos pais e avós nos ensinaram e que passam de geração para geração. Desde tenra idade que somos impelidos pelos nossos pais a cumprimentar os seus conhecidos, constituindo esse passo a nossa entrada numa vida em sociedade, fora do ambiente familiar. A vergonha de outrora, com o rubor bem evidenciado na face, é substituída por um seco acenar de mão a dois metros de distância, porque todos os cuidados são poucos, a alguém de máscara que as crianças não reconhecerão no dia seguinte.
De um momento para o outro, a vida deu uma volta de 180 graus e ficou tudo ao contrário. O que antes era considerado arrogância ou antipatia, agora é enaltecido e incentivado, por ser mais seguro para todos. A inadequação social que antes era criticada, agora até dá jeito. Antes, éramos considerados “bichos do mato” por nunca querermos sair de casa para confraternizar com amigos; agora, somos elogiados pelo bom exemplo que estamos a dar. Inverteu-se o paradigma social e, por estes dias, até um eremita corre o risco de vir a ser considerado um influencer…
Agora, neste malfadado Outono, os números voltam a bater-nos à porta. Com maior incidência no norte do país, o vírus provoca o aumento de infectados, internados e falecidos, de dia para dia, sem dar tréguas. No distrito de Viseu, sete concelhos integram o primeiro lote de 121 concelhos com regras mais restritivas: Cinfães, Tondela, Oliveira de Frades, Moimenta da Beira, São João da Pesqueira, Tabuaço e Santa Comba Dão. Mas estão à porta do segundo lote, que será estabelecido amanhã, os concelhos de Castro Daire, São Pedro do Sul, Nelas, Mangualde e Resende. Por enquanto, os concelhos de Armamar, Carregal do Sal e Vouzela são os mais seguros.
Conseguiremos, desta vez, achatar esta curva ascendente? Os valores são mais agrestes, muito mais, mas aquilo que temos de fazer é exactamente o mesmo que fizemos antes. Sim, até temos essa vantagem da experiência recente. Temos de ter os mesmos cuidados, respeitar as mesmas distâncias, higienizar várias vezes as mãos, usar máscara, evitar ajuntamentos sociais e seguir as recomendações do governo e da DGS. Creio que não haverá ninguém neste país que não tenha ouvido ainda estas recomendações.
Esta não é uma boa altura para se ser rebelde. Esta não é a conjuntura ideal para apregoar à insubordinação e à insurreição. É uma altura para deixarmos de olhar apenas para nós e olharmos à nossa volta, de projectar o olhar e alargar a nossa esfera movida pelos bens materiais, pela rotina confortável, por tiques e automatismos fúteis que pairam como pura abstracção e pensar um pouco no que nos rodeia, porque o nosso ego não pode representar os limites do nosso mundo. E esse mundo, o de todos nós, está a precisar da nossa ajuda para enfrentar uma pandemia a uma escala global. Estamos todos convocados para esse embate com a realidade. E o que podemos fazer está perfeitamente ao nosso alcance.
Entretanto, os números de hoje, 11 de Novembro:
Casos Confirmados: +4935
Número de Internados: +43
Número de Internados em UCI: +9
Óbitos: +82
Recuperados: +3475
Com o que tem acontecido nas últimas semanas, ainda haverá alguém que continue a insistir na teoria da “gripezinha” do Bolsonaro? Vejam as notícias, as crescentes dificuldades nos hospitais do norte do país, prestes a ficar sem camas, sendo obrigados a enviar infectados para outros concelhos, a falta de profissionais de saúde para responder a tantas solicitações, o pedido de ajuda veiculado diariamente por médicos, enfermeiros, autarcas e instituições. Aqueles que insistem em relativizar e a reduzir o que estamos a viver desde Março a uma histeria colectiva sem fundamento terão noção de que poderemos estar na antecâmara de uma ruptura do nosso Serviço Nacional de Saúde? O que será necessário para todos nos consciencializarmos, de uma vez por todas, da gravidade desta conjuntura?
Olhem para os números novamente, onde se registam 82 mortes diárias, o maior número de sempre em Portugal desde o início da pandemia! Olhem, mas não pensem apenas em números, porque são pessoas que ali estão. São pessoas que têm familiares, amigos, conhecidos como todos nós temos. São pessoas que têm alguém, muitos alguéns, a sofrer por elas, não podendo estar ao seu lado, nem apoiar a sua convalescença. Imaginem essas pessoas e tentem colocar-se no lugar delas por um momento, internadas num hospital, entubadas e ventiladas, a lutar pela vida e a ansiar que o próximo fôlego seja uma realidade e não apenas um desejo.