América Latina: como a economia informal está a potenciar a rápida propagação da COVID-19

Estamos a falar do “condutor que sai para trabalhar todas as manhãs e que no final do dia pode levar algum dinheiro para casa, dinheiro esse que agora não existe. Ou das pessoas que saem para vender. Há muitos trabalhadores independentes, pequenos empreendedores que dependem do dia a dia e que, de repente, se veem sem qualquer rendimento”.

  • 22:23 | Quinta-feira, 18 de Junho de 2020
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A América Latina é, segundo a OMS, o “novo epicentro” da pandemia. Aqui, a propagação do vírus da COVID-19 tem como responsável a economia informal que impede os trabalhadores que vivem dos ganhos diários de paralisarem a sua atividade. A ONG Ajuda em Ação iniciou um plano de emergência que inclui 11 países da região para dar resposta à situação.

Devido à COVID-19, há quem não tenha “como viver” na América Latina

Desde que a pandemia se tornou uma realidade na América Latina que a tensão predomina, sobretudo para os cerca de 158 milhões de trabalhadores informais. A falta de rendimentos e a pobreza assombram as famílias e as populações numa região onde as preocupações e o medo vão muito além das implicações da COVID-19 na saúde. “Trabalho de forma independente, a vender os meus petiscos, aquilo que tiver preparado para o dia. Mas agora, com tudo o que está a acontecer, não posso trabalhar e não temos como viver”, conta a peruana Judith Medina. Casos como os de Judith chegam recorrentemente às equipas no terreno da Ajuda em Ação, ONG que trabalha contra a pobreza e a desigualdade social na América Latina, há já 35 anos.


William Campbell, diretor da Ajuda em Ação no Peru, explica que, para já, o seu principal objetivo é entregar “cartões de apoio alimentar a 500 famílias para que possam alimentar-se durante a quarentena” e que adicionalmente serão entregues “kits de desinfeção da água e de alimentação a 250 organizações locais e kits de higiene familiares”. Acrescenta ainda que a prioridade da ONG passa também por “dar resposta a casos de violência familiar, assegurar o apoio socioemocional para as vítimas, assim como ajudar 1.500 famílias a melhorar os seus hábitos de higiene e a recuperar os seus meios de subsistência com a entrega de apoios para retomarem os seus negócios”.

Da Colômbia chega outro testemunho semelhante. Rogelio Montes, trabalhador informal da construção civil, é um dos milhares de colombianos que hoje não tem o que comer devido ao confinamento. Em sua casa, Rogelio era o único que trabalhava e, desde que a crise sanitária chegou ao país, já não o pode fazer. Agora vive do “biscate”, daquilo que surja no dia a dia. Com a voz tímida e embargada, desabafa que a vida durante a quarentena não tem sido fácil, que o jantar tem sido as sobras do almoço e que já não consegue garantir a alimentação básica aos seus filhos. As histórias que chegam às equipas da ONG no terreno tornam evidente que, na América Latina, as pessoas veem-se numa situação impossível entre ficar em casa para combater a COVID-19 ou sair para trabalhar para não morrerem de fome.

O Rogelio e a Judith são, segundo o economista e investigador peruano Hugo Ñopo, os rostos menos visíveis da preocupante situação económica que se vive na América Latina. Estamos a falar do “condutor que sai para trabalhar todas as manhãs e que no final do dia pode levar algum dinheiro para casa, dinheiro esse que agora não existe. Ou das pessoas que saem para vender. Há muitos trabalhadores independentes, pequenos empreendedores que dependem do dia a dia e que, de repente, se veem sem qualquer rendimento”.

A formação destes pequenos empreendedores em plena pandemia faz, por esta razão, parte do plano de emergência que a Ajuda em Ação pôs em prática na região e que inclui 11 países, entre os quais Bolívia, Colômbia, Equador  , Peru, Venezuela, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e México. Mas não só. A ONG pretende apoiar um total de 500 mil pessoas na luta contra o novo coronavírus através da distribuição de equipamento médico, como testes à COVID e medicamentos, e de kits de higiene com luvas, máscaras e folhetos informativos sobre práticas de higiene. Garantir o acesso a água potável, reabilitar centros de saúde ou unidades de vigilância epidemiológica e formar profissionais de saúde também estão entre as ações previstas.

“É muito difícil obrigar o trabalhador informal a paralisar a sua atividade económica”, alerta especialista

A 31 de maio, a América Latina ultrapassou uma marca assustadora na luta contra a COVID-19, ao ter alcançado um milhão de infetados e 50 mil mortes. Não é, por isso, de surpreender que, nesse mesmo mês, a Organização Mundial de Saúde (OMS) tenha referido que a região se tornou num dos novos epicentros da pandemia. E há vários países que apresentam números verdadeiramente preocupantes. É o caso do Peru e do México. O primeiro regista 237.156 casos de COVID-19 e 7.056 mortes, o segundo conta com um número inferior de casos positivos – 154.863 -, mas muito mais mortes: ascendem às 18 mil.

A predominância de uma economia informal pode ajudar a explicar a rápida propagação do vírus. Vinícius Pinheiro, diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a América Latina e Caribe, salienta que “é muito difícil obrigar o trabalhador informal a paralisar a sua atividade económica”. E essa realidade está à vista. Os mercados e feiras estão cheios de vendedores que não podem parar de trabalhar para garantirem o seu rendimento e, por sua vez, de aglomerados de pessoas que ali adquirem o que vão comer naquele dia – muitos nem frigorífico têm em casa para conservar os alimentos por mais tempo.

Nas feiras de rua de Lima, 80% das pessoas estão contaminadas “porque quem precisa de vender para sobreviver fura o isolamento, é o dilema entre o vírus e a fome”, salienta o diretor da OIT para a América Latina e Caribe, dando como exemplo o Peru, um dos países da América Latina que mais rapidamente reagiu à ameaça da COVID-19, impondo de imediato o confinamento social, e que agora vê os seus números aumentarem de forma vertiginosa.

COVID-19, pobreza e uma tempestade tropical: o caso de El Salvador

Nos países latino-americanos que, para já, não apresentam números de COVID-19 tão expressivos, a situação atual não deixa de ser também delicada. O Equador, por exemplo, tem sido um dos mais castigados pela pandemia, com relatos de corpos espalhados pelas ruas à espera que as autoridades os vão recolher. Contudo, os números oficiais acabam por não corresponder à realidade retratada. Também na Nicarágua, nas Honduras, na Guatemala, em El Salvador ou na Bolívia, o vírus tem vindo a propagar-se pela população e a fazer inúmeras vítimas, quer pelo contágio da COVID-19, quer pelo aumento considerável das pessoas em situação de pobreza e pobreza extrema. Sinal disso são as bandeiras brancas e vermelhas nas janelas das casas que assinalam que ali a comida e os medicamentos já escasseiam.

Em El Salvador a situação atual agravou-se no passado dia 31 de maio com a passagem da tempestade tropical Amanda que já provocou 27 mortes e desalojou 11 mil pessoas. A Ajuda em Ação interveio imediatamente estendendo a sua resposta de ajuda humanitária. Como explica Michael Sambrano, diretor da ONG no país, esta “dupla emergência está a agravar as desigualdades sociais, económicas e sanitárias que já existiam em El Salvador. Na Ajuda em Ação estamos a monitorizar a evolução dos danos causados e estamos a apoiar as famílias mais afetadas. Também vamos continuar a fazê-lo durante a reconstrução para que recuperem as suas vidas”. Para já, a ação da ONG centra-se em garantir o acesso a água potável a 32 famílias, na entrega de material de higiene e desinfeção em seis abrigos e na distribuição de material de prevenção e higiene entre 1.500 refugiados espalhados por vários abrigos no país, a fim de travar ao máximo a disseminação da pandemia.

COVID-19 pode fazer mais de 214 milhões de vítimas da pobreza na América Latina

Os números da pandemia na América Latina estão a deixar em alerta ONG, organizações internacionais e as populações que sentem na pele as suas consequências diretas e indiretas. E os números estimados da pobreza na região são alarmantes. O mais recente relatório da Comissão Económica para a América Latina e Caribe (CEPAL), revela que a crise económica gerada pela pandemia deverá levar mais 28,7 milhões de latino-americanos à pobreza e mais 15,9 milhões à pobreza extrema. Assim, no final de 2020, para além das vítimas da COVID-19, a América Latina deverá contabilizar um total de 214,7 milhões de vítimas da pobreza e 83,4 milhões vítimas de pobreza extrema. México, Nicarágua e Equador deverão ser os países onde se registarão os maiores aumentos da pobreza extrema, avança o mesmo relatório.

 

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