Carta de Lorvão
Em Anadia, nascera há quarenta e sete anos o filólogo Manuel Rodrigues Lapa, homem íntegro, duro, independente, defensor da liberdade, crítico do Estado Novo, que não sei se amaria o desporto.
Em Anadia, nascera há quarenta e sete anos o filólogo Manuel Rodrigues Lapa, homem íntegro, duro, independente, defensor da liberdade, crítico do Estado Novo, que não sei se amaria o desporto. Vivia em Lisboa e regressava à Bairrada para reencontrar as origens, como é normal e, às vezes, imperativo. Talvez tenha sentido prazer – se dela teve conhecimento –com a vitória do Sangalhos Desporto Clube na corrida de cem quilómetros disputada nos arredores de Lisboa, em Abril de 1944.
Por esses dias, Manuel Rodrigues Lapa permanecia sozinho em casa. A esposa estava em Anadia até ao dia 8 e o filho fora com ela visitar Penacova e Lorvão, de onde enviou uma carta. Aquilo que hoje se mostra, à pressa, em vídeo instantâneo no Facebook ou no Instagram, era pensado com uma caneta nos dedos, dito num rascunho e passado a limpo para seguir pelo correio. Nada me fascina mais do que o ar do tempo. E essa carta mostra o que era a vida nesse ano em que Túlio Pereira venceu com mérito a corrida de Lisboa.
«Meu querido Pai», escreve Armando, o passeio a Lorvão «não foi de todo mau». «A estrada para lá», diz ele, com aquela sensibilidade de caminhante ou ciclista, «é sempre a subir até aproximadamente dois quilómetros da povoação; aí começa uma descida bastante íngreme e aos ziguezagues, no fundo da qual está o convento com um miserável aspecto exterior». Estamos em plena guerra mundial. Os Aliados preparam o desembarque na Normandia. Em Portugal, vive-se em racionamento e miséria. «A povoação em si é pobríssima; basta dizer que há mais de um ano que não comem pão por não haver qualquer padaria na terra. Fomos perseguidos por um enorme bando de enfezados petizes, sujos e cheios de fome.» O património não vai melhor. «O convento é parecidíssimo com o de Arouca e, segundo me disse ontem o dono da Pensão, já esteve a saque por intermédio de um padre que roubava às descaradas. Fugiu para o Brasil e ainda hoje se encontram bocados de cantaria na região. Os mosaicos antigos foram comprados pelo dr. Bissaia Barreto e estão na casa dele.»
Armando e a mãe comeram broa e queijo e beberam cerveja e laranjada numa taberna, e voltaram a Penacova pela estrada que passa por Chelo. «Matei nesta estrada», confessa ele, talvez com orgulho, ignorando o quão seria reprovado hoje, «uma pequena cobra que a Mãe afirmou ser uma víbora; mas não sei se terá razão.»
Outra vez em Penacova, viu passar a procissão, admirou a vila engalanada e foi pescar ao rio. «Ontem trovejou aqui bastante e hoje também não está grande coisa o dia: vamos a ver se amanhã se pode dar algum passeio.» Não sei quem é a Margarida, mas ela manda cumprimentos para todos. «Eu envio um abraço para os Avós e outro para ti do filho amigo
Armando ».