Afinal podemos viver sem jogos de futebol.
Sem ir ao cabeleireiro. Ou jantar fora.
Sem ir ao shopping.
Sem ir ver uma criança recém-nascida.
Sem ir acompanhar alguém que morreu.
Podemos viver sem ir ao café, sem dar o passeio de fim-de-semana, sem ir ao cinema, sem viajar para outro país.
Podemos viver sem festas de aniversário, sem reuniões de trabalho com apertos de mão e beijinhos.
Sem escolas abertas, sem ir ao ginásio. À missa.
Podemos viver sem ir ao escritório, sem tocar nas maçanetas, nos botões de elevadores, nas campainhas.
Podemos viver mais devagar.
Sabemos agora, com mais certeza, quem são os que merecem o nome de amigos, quem faz de conta que é próximo, mas afinal não, quem parecia mero conhecido mas afinal se importa, quem nunca nos desilude e – como em outras crises terríveis – está lá sempre, para o que der e vier.
Sabemos que afinal estar em casa é pior e melhor que pensávamos. Que a pequena liberdade de um passeio à beira rio é um luxo precioso.
Que trabalhar em casa com crianças pequenas é um desafio quase impossível.
Sabemos agora que a prevenção e a Educação para a Saúde – uma chinesice que gasta dinheiro, mas nunca os quaziliões de euros que o futebol movimenta – teriam podido minimizar a catástrofe que vivemos.
Sabemos agora que um Sistema Nacional de Saúde é uma medalha no peito de cada português. E que a agricultura que deitámos fora, ufanos de betão e autoestradas, nos falta, na condição simples de viventes que precisam de comida. Todos os dias de cada vida.
Sabemos agora que a teoria económica neo-liberal é só isso: uma bela teoria. Quando a realidade lhe bate de repente, esboroa-se em exigências ao Grande Estado. O mesmo Estado a quem exigira semanas antes que fosse pequenino, para não lhe levar os impostos.
Mas todas as coisas que agora sabemos – e que afinal tantos já sabiam há tanto tempo – valerão alguma coisa assim que saltarmos este tempo?
Voltaremos a sentir-nos donos do mundo, da Natureza, a rebentar de adrenalina pelo estímulo despudorado da competição bruta e inútil?
O contrário de competição é a cooperação: uma resposta humana infinitamente mais criativa, inteligente e sustentável, e que pode fazer a diferença quando todas as certezas são varridas pelo inesperado.
Foi a cooperação de milhares de anónimos que pôde suprir as inúmeras faltas de material de protecção aos profissionais de saúde. Foi a vontade, e o coração, que colocaram milhares de desconhecidos a colaborar em rede e a fabricar viseiras, máscaras e até projectos de ventiladores.
Foi a cooperação que permitiu adequar os parcos recursos do país numa luta desigual, uma luta que estamos cooperativamente a vencer.
E pergunto-vos senhores: de que vos vale o carro caro, a casa sumptuosa, as viagens milionárias – tantas conseguidas pela habilidade de competir, à custa do sacrifício de milhares de empregados mal pagos – quando nos vossos pulmões competem corona vírus?