Ainda a procissão vai no adro.
Março de 2020 vai ficar na nossa memória como o mês que questionou todas as nossas certezas, que mudou todas as nossas dinâmicas, que nos fez repensar todos os desejos.
Tal como eu, milhares de profissionais de saúde enfrentam neste momento um desafio que nunca imaginaram poder ser real. E, fora das instituições de saúde, a vida mudou igualmente. A Covid-19 chegou e transformou os nossos dias, mas transformou-nos também a nós.
Vejo à minha volta histórias dramáticas. O P., que tem três filhotes, a mais pequena com dois ou três meses, e está há várias semanas longe de casa por não querer infetar a sua família. O D., que foi pai há menos de um mês e que há dez dias apenas vê a sua filhota por videochamada. Os filhos de casais em que ambos os elementos são cruciais nesta fase e nenhum deles pode ficar com os miúdos. A maioria de nós não contacta diretamente com os seus pais há semanas, e resta-nos o telefone para sabermos que estão bem – e também para os sentirmos sozinhos e desprotegidos como nunca. São milhares de pessoas que estão na linha da frente receando ser infetadas – na maioria não tanto por elas, mas por receio de transmitir a infeção aos seus familiares ou serem vetores dentro da própria instituição.
O que eu vejo é uma abnegação comovente. São pessoas que despem o fato de pai, mãe, filho, filha, marido, mulher… para serem “apenas” mais uma peça fundamental na engrenagem do sistema monstruoso que se fez nascer, em menos de um mês, para lidar com a pandemia.
Mas não, não ficamos por aqui: estes homens e mulheres de rostos anónimos chegam a casa (frequentemente, não ao seu lar, mas a quaisquer outras quatro paredes) e vão ainda estudar as últimas normas, ler as últimas instruções, procurar os artigos mais recentes. Muitos médicos saem das urgências e fazem consultas por telefone, e prestam todo o apoio que conseguem aos seus doentes. Todos os profissionais tentam ajudar a população da forma que podem, nomeadamente pela educação.
Estas pessoas de quem vos falo são homens e mulheres com rostos transfigurados por horas contínuas com máscaras e óculos a vincarem-lhes a dor no rosto. Fazem turnos erráticos e sabem que, tão cedo, não podem fazer quaisquer planos. Sabem que nas próximas semanas vão assistir a uma escalada infernal de infetados, de mortos. Adivinham que vão ter de fazer muitos malabarismos para gerir o pouco que têm para o muito que está por vir. Não dormem uma noite descansada, sempre sufocados por saberem que acordarão para muitos mais dolorosos dias do mesmo. Sabem que, mais cedo ou mais tarde, certamente chegará a sua vez de ficarem infetados, em casa – e a impossibilidade de não poder prestar ajuda é incrivelmente dolorosa numa altura em que somos chamados a sermos humanos, cidadãos e a dar o melhor de nós no que sabemos fazer.
A Covid-19 também redimensionou as nossa vidas. Todos percebemos já que os planos ficaram em suspenso, aprendemos a reinventar-nos. Já não pensamos nas férias da Páscoa, na festa de aniversário ou na futilidade das últimas coleções nas lojas. Sabemos que estes tempos vai ser difíceis, mas vão ser igualmente desafiantes os tempos que se seguem, em que sentiremos na pele o preço desta estagnação necessária. E todas estas mudanças trouxeram também à tona o melhor de nós.
Sabemos que o país reconhece o trabalho de quem dá o corpo à luta. Recebemos apelos de força e de coragem por todos os meios, há donativos que nunca são suficientes para o que aí vem, há palmas à janela. Há quem se ofereça para ajudar os vizinhos, quem queira ia à farmácia buscar os medicamentos do velhinho do andar de baixo, há movimentos incríveis de apoio à comunidade, há indústrias a dedicar-se de corpo e alma à produção de equipamentos de proteção.
O que nós não sabemos, nem temos de tolerar, é o egoísmo dos que continuam a viver como se nada fosse.
Há os que continuam a sair à rua só porque sim. Vagueiam pelas ruas à noite, quando ninguém os vê, para apanharem ar. Saem porque o exercício lhes faz muita falta – talvez julguem que lhes faz mais falta do que fará o pai ou a mãe. Vão ao supermercado comprar meia dúzia de itens – é uma boa razão para espairecer. Compram pão todos os dias porque os indigna mais a ideia de comer pão torrado em vez do fresco do que a de poder já não haver ventilador para o Sr José, ou a D. Maria. Vão ao Multibanco apesar de saberem que não devem utilizar dinheiro para fazer pagamentos, vão aos CTT, vão pôr combustível porque não há filas mesmo sabendo que devem ficar em casa e não precisam nem devem conduzir para lado nenhum. Há negócios absolutamente não essenciais que continuam de portas abertas, a desafiar obstinadamente o destino, como se os lucros fossem mais importantes do que uma vida que seja.
Desculpem, mas não: a estupidez de muitos não merece um pingo do esforço dos que estão do lado de cá. Ah, se é tão mais fácil ficar em casa do que estar frente a frente com a realidade! Há um desrespeito indizível por parte destas pessoas que acham que as medidas de contenção não são para elas. É uma forma de desdenharem do nosso trabalho e do nosso esforço, de dizerem que não se importam minimamente com o que acontece a quem precisa de ajuda. Este mundo não é para vós, arrogantes idiotas. Chego a lamentar que vivamos num sistema tão brando, em que estas pessoas continuem a ter liberdade para fazer estas escolhas.
A procissão ainda vai no adro, e é importante que entendamos isso. Não sabemos quanto tempo vai durar, quando poderemos abraçar-nos novamente ou voltar a juntar a família à volta da mesa. Desconhecemos até quando traremos esta dor no peito e a respiração em suspenso. Mas sabemos que tudo é mais fácil se nos sentirmos ligados, apoiados, se sentirmos que, mesmo chegando a uma casa vazia, encontramos carinho expresso em palavras e gestos a cada dia. Continuemos a mostrar, todos, o melhor de nós. A sermos todos pequenos heróis, cada um de seu modo. É só isso. Valerá muitas vidas.