Recuperando as previsões de astrólogos, tarólogos e cartomantes nacionais, verifico que todos convergiram no prognóstico de 2020 ser um ano bom, sem calamidades dignas de registo.
Aqui chegado, três meses passados, fiquei fã dos adivinhos.
O culpado da pandemia será o morcego que, no mercado vivo de Wuhan, se cruzou com o pangolim, antes de ter infectado o homem? Ou a cadeia de transmissão terá sido outra, e mais maquiavélica? Ou os elementos ter-se-ão zangado?
Convivendo com a dúvida, porventura irresolúvel, da origem do problema, repouso os olhos nos números do presente e nas consequências que ele carrega.
O coronavírus é indiferente às regras da contabilidade pública e das disciplinas orçamentais, aumenta os défices e rebenta com as dívidas públicas. Tem o seu ritmo de propagação, não quer saber de prazos e burocracias, não espera por reuniões, não cumpre normas, não obedece a despachos. É alérgico a hierarquias e a protocolos.
O coronavírus é popular, não escolhe hospedeiros, ataca idosos e jovens, banqueiros e outros artistas, enfermeiros e médicos, povo e clero, até a realeza. Gosta de multidões, ajuntamentos e convívios. É um predador que aleatoriamente pode fazer de cada um de nós a sua presa preferida.
É forte, não há quem lhe ponha freio, dribla antivirais e antecipa-se a qualquer vacina.
É selectivo, mata muito menos novos do que velhos, idosos ou seniores, como se diz agora.
Ri-se dos decisores políticos, néscios e levianos, que o minimizam, chamando-lhe “gripezinha” e “resfriadinho”. Não gostando do desdém, vingativo, ameaça voltar no Outono.
Por cá, neste balcão debruçado sobre o Atlântico, entrámos na fase de mitigação, a mais crítica. Por causa da propagação do vírus não ter sido contida, ele circula activamente na comunidade e está em todo o lado.
São estranhos, estes tempos!
A solidariedade deixou de ser a palavra que se diz, é o gesto que se faz, não é o vocábulo que se pronuncia, é a atitude que se toma, já não é tanto um princípio, é mais uma ajuda.
Com a excepção da praia de Carcavelos e do calçadão da Póvoa, estamos a ser civilizados e contidos. Espero que seja mais por sentido cívico do que por misericórdia ou medo que o bicho nos bata à porta.
Há palavras novas que nos entram casa adentro, isolamento social, contenção, mitigação, estado de emergência, passeios higiénicos, surto epidemiológico, cercas sanitárias.
E a 9 meses do fim de 2020, antecipo que a palava do ano vai ser aquela que hoje tanto nos assusta.
Entretanto, não faltam empresas sem pudor nem vergonha que se aproveitam da desgraça dos outros para inflacionar preços e aumentar lucros. E há casos de subida obscena dos preços de bens essenciais.
Não duvido que à crise sanitária, se seguirá a crise económica e financeira que nos vai moer os ossos e dar cabo da vida. A abertura das torneiras, autorizada pela UE, visa impedir que a economia feneça de morte súbita, mas dará lugar a um saque fiscal, que na agressividade se aproximará daqueloutro decretado pela “Troika”.
Uns, morrerão da doença, outros, finar-se-ão de miséria.
Na saúde e na economia, não há almoços grátis.
Por mais fé que tenha nos recursos que o SNS diz ter e queira acreditar nas palavras do PM, António Costa, “Até agora não faltou nada e não é previsível que venha a faltar alguma coisa”, não me esqueço que duas semanas antes do aparecimento do 1º infectado em Portugal, dois pacatos cidadãos faleceram na sala de espera de dois estabelecimentos hospitalares distintos.
Ouvindo as notícias, não fecho os olhos aos gritos de impotência de profissionais de saúde, das Ordens aos sindicatos, à denúncia de falta de material nos hospitais, às previsões pessimistas de infecciologistas de renome, à falta de planos de contingência para doentes hemodialisados, aos testes que parecem escassear, aos avisos dos autarcas sobre a violação do controlo nas fronteiras, aos pedidos para que os emigrantes não regressem.
Uma nota final, sendo Portugal é o 5º país mais envelhecido do mundo, seguindo-se ao Japão, Itália, Grécia e Finlândia, e sabendo que o vírus ataca os seniores com mais severidade, parece-me que houve alguma desvalorização do risco de contágio nos lares, que entraram só agora, talvez tardiamente, no radar das autoridades. E não é “coisa” pouca, são só 100.000 almas.
Contudo, para as avaliações e críticas haverá um tempo.
Até porque depois de comer, nunca faltam colheres.