Entrámos no carro, estacionado em frente de um portão de madeira pelo qual se acedia a uma divisão espaçosa onde, nos anos de 1970, o grupo musical Os Rouxinóis ensaiava o reportório. O pai do Vendedor fazia parte do elenco e creio que o próprio Vendedor e o magnífico baterista Enólogo chegaram a participar em actuações que, no fim da carreira, se restringiam a missas cantadas e ao acompanhamento de procissões.
– Fizeste bem em deixar o carro longe do judas. Aquilo ainda chegou a preocupar. Agora que penso nisso, lembro-me de, em miúdo, assistir às cautelas do automobilistas quando o judas já se rebentava no adro. Estacionavam a uma distância prudente com uma justificação curiosa para quem estava em dia de Páscoa e prestes a ir à missa: – Não vá o diabo tecê-las!
O Anastácio pusera o automóvel em andamento. Avançou até ao largo e deu meia volta. Perguntei-lhe para onde íamos.
– À primeira corrida de bicicletas, em meados de Julho. O que lhe parece? A não ser que queira ficar na Páscoa, a ver isto e aquilo.
– Não. Há coisas que sei, mas não quero, por agora, presenciar. Demora tudo muito tempo. Andei a fazer perguntas e concluí que, na Páscoa, o freguês dava dois ovos ao pregador e cinco escudos e meio quilo de açúcar ao padre. Por muito curioso que isto seja, temos de avançar.
O Anastácio concordou. Porém, não havia motivo para aplacar a conversa.
– E se o pároco também fosse o pregador?
– Recebia tudo. Usava-se meter a moeda de cinco escudos numa fenda aberta em laranja grande e luzidia. O Bruno contou-me que, em Grada, há famílias que vão escolhendo metodicamente a maior laranja para lhe encostar o envelope com dinheiro para o padre, isto no século XXI, claro.
– Porque havia o pregador de receber aqueles ovos todos?
– Para lhe retribuir os sermões da Quaresma. Em tempos de missa em latim, um pregador tinha o seu valor. Punha em língua vulgar e com boa retórica aquilo que os fregueses não entendiam na eucaristia. Acho que os havia em todos os domingos da Quaresma, à tarde. A via-sacra na quinta, sexta e sábado anteriores à Páscoa devia ser dirigida pelo pároco. Enfim, não sei. Isto são coisas que me contam. Vamos às corridas.
– E aquele hábito de esconder os ovos para dificultar a recolha do sacristão?
– Ah, Anastácio! Onde isso nos levava…
– E a mãe da Catarina, que amassa o folar só com a mão direita e não admite a alternância com outra pessoa?
– E o homem da bicicleta?
Aqui, o Anastácio travou e olhou-me com surpresa.
– Qual homem da bicicleta?
Nuno Rosmaninho