UMA FATIA DE BOLO-REI COMO PARTILHA
Pouco importa agora ir lá longe buscar a indecisa origem do “bolo-rei” nas Saturnais do mundo romano do tempo do Império, do caminho trilhado por tradições a que o povo se apegou, esta, como a do madeiro aceso que se manteve no Natal cristão. Pouco importa como foram os caminhos por latitudes mais a Norte […]
Pouco importa agora ir lá longe buscar a indecisa origem do “bolo-rei” nas Saturnais do mundo romano do tempo do Império, do caminho trilhado por tradições a que o povo se apegou, esta, como a do madeiro aceso que se manteve no Natal cristão. Pouco importa como foram os caminhos por latitudes mais a Norte ou mais a Sul.
O Bolo-Rei pousa na nossa mesa no tempo de Natal e a sua presença estende-se pelos Doze Dias festivos, mas é essencialmente marca maior da noite da Epifania, dessa chegada que parece de milagre, dos Três Reis que vieram de tão longe, viagem tornada preito de homenagem a um Rei maior que chegava e eles estranhamente acreditavam que um tempo novo aconteceria na Terra dos Homens.
Vai ser, sem dúvida, em cerimoniais de Corte e fidalguia do norte da Europa, com particular desenvolvimento na França do Rei Sol, que nasce e se estende a tradição gastronómica de um manjar de eleição, o “bolo real”, (la galette de rois) porque enriquecido de geleias e frutos e o saber-fazer de mestres, depressa acrescentado com elementos que tornavam verdadeiramente lúdica a noite da sua partilha, a “fava” (que chegou a fazer-se de louça fina e a tornar-se produto de colecção).
O costume passou ao povo, como outros, por mimetismo, e foi em vão que a laica Convenção francesa, na continuidade da Revolução, intentou dar-lhe a designação burguesa, à data, de “manjar da igualdade”, lema apregoado, mas não cumprida a doutrina, então, como hoje ainda.
Desse país das Luzes desce à Lusitânia antiga na segunda metade do século XIX e aqui se instala ganhando essa singular performance que evoca coroa de um rei, cristais de frutas das cores do rubi, da turquesa, do topázio ou da turmalina adornando-o como antigamente as joias à Coroa dos reis bárbaros. Estende-se ao país, chega a Viseu ainda no século XIX e, como sempre, pousará, nesses começos, em abonadas mesas de abastados proprietários, de comerciantes afortunados ou de profissionais liberais de algum sucesso. E permanece por muito tempo no quadro do universo urbano, da cidade. A sua democratização, o alargamento do consumo quase só tem começo quando os princípios democráticos se tornam bandeira a seguir, quando o pão, mesmo chegado de França, pôde pousar em outras mesas. E lá vinha, esplêndida coroa de rei, pousava alegre sobre a mesa de festa, a fava, desvirtuada do seu uso antigo mantinha o encanto do jogo e a prenda nele arquivada tornava-se augúrio de fortuna.
A tradição mantém-se viva. Desapareceu a “fava”, o “brinde” especioso, por mais que insignificante de valor, fez-se nascer o “Bolo-Rainha”, porque os direitos da gente se recompuseram, inventou-se o “Bolo-Rei escangalhado”, talvez o que melhor corresponda a este nosso mundo em desalinho onde as tiranias persistem, onde as monarquias permanecem imperfeitas e onde as repúblicas se tornaram corruptas.
Pouco importa, nome ou forma. Importante é que pouse na mesa de Natal de todos os lares, na casa-abrigo de quem não tem lar, que as fatias partidas sobre a mesa se multipliquem e que as mãos que as tomam, as estendem, as oferecem, sejam mãos amigas, mãos de conforto, mãos solidárias, mãos de perdão. Epifania do bem.
Está nas nossas mãos. Só que é preciso querer.
Imagem: Reis Magos. Madeira policromada. Séc. XVIII. Igreja da Faia. Sernancelhe (Foto José Alfredo)