SEMPRE QUE O ESTIO VEM
Sempre que o estio vem eu lembro os grados centeais da minha terra, lembro os gestos dos ceifeiros, águas de rega reservadas por louvados, roupas de barrela a corar na margem dos ribeiros. Sempre que o estio vem lembro-me dos ninhos da carriça, da milheira, da perdiz, do arrulhar das rolas nos pinheiros, dos grilos, […]
Sempre que o estio vem eu lembro os grados centeais da minha terra, lembro os gestos dos ceifeiros, águas de rega reservadas por louvados, roupas de barrela a corar na margem dos ribeiros.
Sempre que o estio vem lembro-me dos ninhos da carriça, da milheira, da perdiz, do arrulhar das rolas nos pinheiros, dos grilos, das cigarras que levavam tardes a cantar, das rãs a coaxar pelos ribeiros, das andorinhas que ensinavam os filhos a voar, dos morcegos, rua fora, de olhos cegos, sem parar, da Lua-cheia, montes fora, a cavalgar.
Sempre que o estio vem lembro-me do cheiro do rosmaninho, do alecrim, da bela-luz, lembro-me das fogueiras, dos deuses antigos para quem foram inventadas, lembro-me de S. João, das efabuladas fontes de prata com bilhas quebradas nas cantigas em quadras, lembro-me da afeição que ganhei pelas Cavalhadas.
Sempre que o estio vem eu lembro as manhãs com orvalhadas, os ramos bentos plantados pelas hortas, exorcismo para o pulgão e a lagarta. Lembro os bagos da videira no pintar, maçãs sanjoaninas que se davam a provar, lembro as nossas brincadeiras de rapazes, trenós de giesta deslizando nos outeiros, gaitinhas de pau de sabugueiro e os assobios comprados por dez réis a um louceiro. E o jantar das menininhas feito a brincar, danças de roda com lencinhos deixados aos pés de alguém para cativar.
Sempre que o estio vem lembro as abelhas de meu pai, zumbindo, afanosas, nos cortiços e os favos de mel luzindo como a luz do sol ao meio-dia. E a flor da tília que minha mãe colhia e estendia à sombra, em toalha branca, para secar.
Sempre que o estio vem lembro as romarias, madrugadas de caminho, as três voltas à capela das mulheres a rezar, merendeiros, estampas da Senhora da Lapa que os homens levavam, dobradas, no chapéu e depois se colavam, talismã, nas tábuas de um frontal. Romarias de gado, às vezes, com as ovelhas enfeitadas.
Sempre que o estio vem eu lembro-me de Proserpina ou de Perséfone, tanto faz, a jovial deusa dessa terra de emoção, a Grécia antiga e eterna na memória, esse chão que eu também tenho por berço, coração, Proserpina que talvez apenas desejasse não ser deusa mas mulher, a quem Plutão ou Hades, que os mesmos são, deixa que suba à Terra a banhar-se de sol e de luar, a enfeitar as tranças de cereja e mal-me-quer, a abraçar suas irmãs, porque não, outras mulheres que a levam para as rodas das animadas danças dos ceifeiros.
Sempre que o estio vem, quando o trigo loureja na planície ensoleirada, eu lembro-me da gente que ainda não partilha desse pão.
Sempre que o estio vem eu lembro-me…