“A Peste”, de Albert Camus (1947) é muita coisa. Para além de um excelente romance é um tratado de psicologia colectiva e de sociologia. Mas é mais… uma imensa alegoria que retrata a vida feliz numa cidade do norte de África (Oran) até ser atacada por uma virulenta peste (bubónica) propalada por hordas de ratos escapulidos dos esgotos onde há muito viviam.
É uma alegoria de Paris, ou se quisermos, da França, antes de ser invadida pelos nazis no decurso da IIª Grande Guerra.
A população mostrou colectiva e individualmente o seu carácter, a sua personalidade, os seus mais profundos traços idiossincráticos. Uns lutaram com denodo arriscando as suas vidas, perdendo-as mesmo, para lutar contra a peste e salvar os seus conterrâneos. Outros aproveitaram-se do vírus e do clima de estado de sítio instalado para dele tirar proveitos, em negociatas sem escrúpulos, aumentando brutalmente seus proventos à custa da desgraça e da felicidade de terceiros.
A imagem dos “resistentes” e dos “colaboracionistas”. Dos revoltados e dos conformados. Dos solidários e dos oportunistas. Das vítimas e dos carrascos…
Enfim, fruto de extenuante luta, um dia, a epidemia é debelada. Mas, enquanto a população feliz festeja, o narrador deixa um sério aviso: os ratos não morreram (não morrem nunca)… procuraram novamente o esconderijo de seus fétidos esgotos onde aguardam, pacientemente, o momento de voltar à superfície para mergulhar na dor profunda e na morte, uma cidade feliz, fruto da sua segadora calamidade.
Hoje, “A Peste” tem epidemias a singrar por todo o planeta. Com maior ou menor intensidade, ela faz a suas vítimas. Com maior ou menor mediatização, ela mata em todos os continentes…
De Brecht sempre me ficou a célebre frase: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” (cito de cabeça)
Hoje, em sociedades não afectivas, que esperam que se gere? Carneirinhos de fofa lã bege trotando a balir extasiados para a ara da imolação?
Poderia fazer analogias com os recentes acontecimentos de fim de Ano, em Colónia, na Alemanha. Mas não consigo. Felizmente não detenho a capacidade de vestir a pele de um refugiado, escorraçado da sua terra, malquisto em todo o lado, a ver a felicidade festiva e abundante morar ao lado. Violência? Sim, decerto. Ingratidão? Sim, decerto. Mas mesclada com a revolta emergente do mais profundo das entranhas. Revolta que não sentimos porque nos falta a desgraça e a dor que a gerou.
Há sempre uma leitura facilitista dos factos. Imediatista e vendedora de opinião. Há menos uma análise das causas geradoras dos efeitos… essa, porque carece de alguma profundidade, não vende jornais, nem aumenta o share das audiências.
A Alemanha faz a sua tardia e wagneriana catarse. Não sublimou, na sua generalizada amnésia súbita das atrocidades outrora cometidas, a sua culpa. Talvez esse remorso subsista. Ou talvez seja apenas mais uma entretecida manipulação mediática (cabala?) cozinhada num daqueles gabinetes hiper secretos tipo “Circus”, do nosso estimado e inteligente espião George Smiley…
Vivemos um estranho tempo onde a violência atingiu inauditos e novos cumes. Mas também um tempo onde raramente o que parece ser é, e o que é raramente o parece.
As verdades, em sociedades de multidões aceleradas, esgotadas, exploradas, reprimidas e acríticas… as verdades são circunstanciais retratos de reluzente fast food de acordo com as imperiosidades ditadas pelas elites dominantes.
Nero, que não tinha televisão nem facebook, já não o ignorava, na sua insânia devastadora. E ora lhes dava o pão no sanguinolento coliseu, ora proporcionava, em directo, o esplendente espectáculo de Roma a arder. E tinha a turba distraída, animada e controlada…
Tenha uma feliz quarta-feira.