CRÓNICA BRVE DE UM “MAGUSTO” ANTIGO
Chegou a Santa Catarina, dia feriado na escola, e fomos buscar a imagem que havia de presidir ao magusto. Tinha-a o Zé Lóio à sua guarda em cima do caniço, motivo porque, ainda que especiosa de feições e veneranda, estava negra como o ébano (…) E cada um com sua taleiga de castanhas, a […]
Chegou a Santa Catarina, dia feriado na escola, e fomos buscar a imagem que havia de presidir ao magusto. Tinha-a o Zé Lóio à sua guarda em cima do caniço, motivo porque, ainda que especiosa de feições e veneranda, estava negra como o ébano (…) E cada um com sua taleiga de castanhas, a botelha ou a borrachinha grávida de verdasco, ala em procissão para as matas.
Aquilino Ribeiro, in Cinco Réis de Gente.
Passava-se este episódio nos primeiros anos da última década do século XIX, andaria Aquilino pelos sete ou oito anos e frequentava, com a demais miudagem da efabulada “Lomba de Baixo” (o Carregal de Sernancelhe), a escola de D. Letícia sita numa casa não longe da Capela de Santo Amaro que ainda por lá demora.
Era dia de Santa Catarina, dia feriado na escola, provavelmente um velho uso da invenção das Mestras que assim antecipavam práticas pedagógicas de modernos usos, isto no que toca às salutares ocupações para-escolares ora reinventadas, Aquilino não explica a escolha do dia dedicado a Santa Catarina (de Alexandria) que a “Folhinha” celebra a 25 de Novembro, quando a data mais seguida para os magustos da aldeia se situava na roda dos Santos, mais até que no S. Martinho.
Arvoram, caminho fora, em jeito de paródia, uma velha imagem de roca que os mordomos de Santo Amaro haviam abandonado no caminho e o seu vizinho (de Aquilino), o Zé Lóio, displicentemente atirava para o caniço depois da função.
Letícia acompanha a rapaziada, mai-lo seu esposo, o senhor Santos e chegados à clareira escolhida os rapazes pousam o andor da patrona sobre um outeiro, carreiam gabelas de caruma seca de um pinhal vizinho, estendem as castanhas no lajedo que recobrem de caruma e em breve, aceso o lume, vão as castanhas de estalar como os estridentes risos da malta endiabrada.
Descascam depois as castanhas ainda ferventes, bebem inocentes golos de vinho novo que alguns trouxeram em botelhas caseiras ou nas borrachinhas de ir à feira ou à romagem, guardam nos bolsos os últimos bilhós, e correm, uns atrás dos outros, as mãos negras da cinza, mascarando-se de negro. E retornam cantando pelo caminho fora quando a aragem da tarde de Novembro começa a soprar e a luz do sol se esconde por detrás dos pinheirais.
Despregam do andor que volta à casa da fábrica da igreja de onde o desencantaram e entregam na porta do Zé Lóio a imagem da padroeira que retorna ao seu canto de paraíso no caniço em desuso. E recolhem a casa ao tocar de rezar.
Memórias. As minhas também, que em meados do século XX ainda era assim na minha terra, Terras do Demo para mim tornadas paraíso, bornais de castanhas, vinho novo, um lume ardendo, fogo sagrado, as castanhas estalando como os nossos risos, a cara enferretada, e o retorno à morada de nossos pais, a bênção solicitada de mãos postas quando o sino acabava de tocar Ave Marias.